Meia hora para o show. Anos atrás estaria acendendo o enésimo cigarro do dia e bebendo uísque ou vodka no gargalo. Ao contrário de tantos companheiros daquela época, nunca tinha caído na tentação das drogas mais pesadas; lhe bastavam a nicotina e o álcool. Os companheiros se foram, quase todos; ele ainda estava de pé – e às vezes se perguntava se valia a pena. Tinha largado tanto uma quanto o outro há anos e agora se contentava com um antiinflamatório e um analgésico engolidos com um gole de coca zero. Além da hipertensão, havia o diabetes.
Quinze minutos para o show. Estaria no enésimo cigarro mais dois a essas alturas. E naquele estado entre sóbrio e bêbado que com tanto cuidado cultivava. Observando os companheiros de banda mais para lá do que para cá, consciências alteradas, mas talento imaculado. Os companheiros se foram, quase todos, menos o que entra no camarim. Tinha sido baixista da primeira formação da banda. Mas nunca muito bom. Quando surgiu o primeiro hit, a gravadora sugeriu uma substituição e ele, humilde, aceitou. Por insistência do líder, foi contratado como assistente do manager. E encontrou-se: dois anos depois era o empresário oficial daquela já grande e ainda crescente potência da música. Ao longo das mais de duas décadas, cuidara da banda como se dela fosse parte. Como de fato era, de certa forma. Ou tinha sido. Ou algo assim. Um homem de confiança.
No camarim, a conversa de sempre: “Tudo em ordem, chefe?” Desde que passara de músico a burocrata, sempre o chamara de chefe, em tom de brincadeira. “Tudo”. “E a mão? Tá doendo?” – logo antes de todo show, a mesma pergunta, desde que a artrite fora diagnosticada. “Não, hoje tá boa”. Sempre a mesma resposta. E, por trás da resposta, o que os dois sabiam e nunca tinham dito: um dia a mão não ia aguentar riff após riff; solo após solo. O dinossauro ia morrer em praça pública.
Nunca tinham dito, mas uma hora iriam dizer e foi naquele dia. “Cara, preciso me aposentar. Parar antes de fazer feio”. “Que nada, chefe. Você ainda tem anos pela frente”. Sempre assim: de um lado os músicos e seus egos frágeis, seus vícios bobos. Do outro, o executivo que só fazia administrar finanças, vaidades, inseguranças e nunca mais tinha posto a mão num instrumento. “Não sei o que seria de mim se não fosse você”. “Claro que sabe. Você ia fazer sucesso de qualquer jeito. Talento como o seu?” Condescendência e adulação. Bases estranhas para uma amizade de mais de trinta anos, desde antes de descobrirem a música. O ex-baixista ruim sentou-se ao lado do guitarrista prodígio. “Quer a bolsa de água quente?” A resposta foi só um abanar desanimado da cabeça. “Quer alguma outra coisa?” Mesma resposta. Ficaram sentados em silêncio.
Cinco minutos para o show. Levantaram-se. “Cara, preciso mesmo parar logo”. “Não se preocupa. Vai dar tudo certo.” Sorriram um para o outro e foram cada um para o seu lado: o músico para o backstage; o empresário para a cabine de som. Vai dar tudo certo, repetia internamente o guitarrista, ouvindo a voz do amigo. Vai dar tudo certo. Entrou no palco ainda escuro, pegou a Gibson e esperou as luzes.
Dez minutos de show. As mãos, já aquecidas, não doíam mais. “Vai dar tudo certo.” Tinha até incluído no setlist desta turnê um medley que passava por aquela do Bob Marley que dizia isso.
Vinte minutos de show. Trinta. As mãos já cansadas. Mas sem problemas até agora. Mesmo porque, com o passar dos anos, tinham simplificado as passagens de guitarra, diminuído as extensões de dedo mínimo. Já não era um moleque de vinte anos.
Quarenta minutos. Já não conseguia dizer para si mesmo que a mão não doía. Porque doía. Mas repetia para si mesmo “tudo vai dar certo, vai dar certo, every little thing’s gonna be alright”, numa voz que misturava a do Tuff Gong e a do amigo que, fora a música, era a única constante em tantos anos de estrada; que tinha ajudado a lidar com divórcios, pensões, advogados, fazer tentativas e mais tentativas de largar o cigarro e a bebida, a enfrentar os médicos, a encarar um show depois do outro. Sentia um pouco de vergonha de ser condescendente com ele. Mas era assim a amizade: condescendência e adulação. E funcionava. A única constante, a amizade: a confiança que tinha no amigo e que o amigo tinha nele. Sabia muito bem, no fundo, que só não tinha desistido ainda, só não tinha parado por medo de fazer feio, por causa dessa confiança inabalável que o músico sem talento tinha no virtuose. Entre uma música e outra, um gole de chá gelado e mais um analgésico. Ia dar tudo certo.
Quase uma hora de show. As apresentações da banda hoje em dia duravam pouco mais do que isso. A mão já não aguentava as maratonas de antigamente. Quase uma hora de show e, com uma hora exata, entrava aquela música. Aquela que tinha feito com que passasse de guitarrista de sucesso a deus do rock. Aquela que os moleques suavam para aprender. Aquela do solo heróico de seis minutos. Aquela que tinha virado uma forma especialmente cruel de auto-flagelação. Aquela única que os fãs faziam questão absoluta de ouvir e que não podia sair do programa. Tinham tentado uma vez. Foi a pior turnê da história da banda. Os jornais avisavam antes: não espere ouvir Aquela.
O guitarrista respirava fundo e tentava esquecer a dor. Na metade da música já sabia que dessa vez ia ser difícil. Os remédios já não bastavam. Sentia cada tendão como se fosse uma corda de mizão esticada até virar um mizinho. Mas respirava fundo e ia em frente. Já nem estava mais preocupado com a platéia, nem com fazer feio. No fundo, o que queria mesmo era não decepcionar o amigo. Ou mostrar para ele que ainda era o gênio das cordas e sempre ia ser. Mas dizia para si mesmo que era para justificar aquela confiança.
No meio do solo, um pequeno erro, mas achou que ninguém tinha percebido. Dois compassos depois, outro erro. Não ia dar. Olhou na direção da cabine de som, que não via por causa das luzes. Mas olhou assim mesmo, querendo que o amigo visse em seus olhos o pedido de desculpas por ter traído sua confiança. A mão já não aguentava mais. Errou de novo. Feio
E viu que ninguém percebeu. Tinha perdido quatro notas seguidas, mas elas vieram no retorno. Parou de tocar. E a guitarra continuava. Aos poucos o público parou de bater palmas no ritmo da música. O guitarrista base parou também e, logo em seguida, o baixo. A bateria e o teclado demoraram um pouco mais. Mas a guitarra solo continuava. Daí vieram as vaias.
Na cabine de som, o ex-baixista gargalhava e brincava com a caixa do CD de playback que há anos deixava preparado para esse dia.
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