20 de ago. de 2009

Reverso

Estava meio bravo porque tinham esbarrado nele enquanto dormia. Levantou e começou a andar por ali, cambaleante, sem lugar certo para ir, ainda com sono. Resolveu voltar e dormir mais, mas não encontrou o papelão e o cobertor e ficou mais bravo ainda. Alguém tinha levado embora. Ou então não lembrava mais onde tinha deixado.

Não lembrava mais de muita coisa. Dali a minutos não lembraria mais por que estava bravo. Mais alguns minutos e nem se lembraria de que estava bravo. Alguns anos de crack, cachaça, esmalte e o que mais encontrasse para se distrair tinham seu preço e a cotação era em neurônios, sinapses e cardiomiopatia.

Talvez estivesse com fome, mas, se estava, não tinha percebido ainda. Por enquanto ainda estava meio bravo, embora não se lembrasse por quê. Alguém tinha esbarrado nele, ou coisa parecida. Estava com sono. Pensou em ir dormir. Mas lembrou que tinha se esquecido de onde estava sua cama e desistiu.

Não fez diferença: viu algo brilhando no chão e lembrou que o tio da padaria trocava latinhas vazias por comida. Ou cachaça. Ou, de madrugada, quando ninguém estava olhando, por crack (mas para faturar uma pedra precisava muita latinha; precisava um saco grande cheio).

Pegou a latinha e viu outra logo ali. E outra. E outra. Muita latinha hoje. Muita gente, também. Muita. Gente se espremendo. Para ele não fazia diferença porque aquela gente limpinha de vários cheiros estranhos abria espaço para ele passar. Ele não sabia, mas era porque achavam que ele era sujo e tinha um cheiro estranho. E tinham um pouco de pena, mas mais medo. Então abriam espaço e ele pegava uma latinha, amassava com o pé e enfiava em algum bolso da calça cargo que um dia alguém pagara muito caro para ter, mas hoje vestia com muita sobra um garoto magro.

“Garoto”, digo, por causa do tamanho. Não sei que idade tinha. Essa história de narrador onisciente é balela. Mas o tamanho era de garoto. Além disso, entre outras coisas, quem é como ele raramente chega a deixar de ser garoto. Fica sem neurônios e sinapses pra pagar a conta e pronto, babaus.

Mas naquele dia, com toda aquela gente amontoada tomando cerveja e abrindo espaço para ele catar latinha, ia comer. Com um pouco de sorte, ia até arranjar uma cachaça. Ou uma pedrinha. Quem sabe?

A sorte foi até demais. Aquele povo não ia embora e não parava de tomar cerveja. Comeu, descolou uma pedra, apagou, levantou, catou mais latinha e descolou duas pedras. A sorte foi demais porque era pedra demais para alguém que não chegava a 50 quilos e comia mal e às vezes e pouco.

Na Virada Cultural do ano que vem ele não vai estar lá e ninguém vai perceber a diferença.

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