31 de ago. de 2010

Cala

(ao avô, mestre e poeta Geraldo Vidigal)
Cala-te, Musa:
não há quem te ouça.
Cala, Cidade:
tua voz nada diz.
Calai-vos, Arcadas!
Quem ousa tanger
a lira partida
do Predestinado,
do Mestre Aprendiz?

Cala-te, Musa.
Imploro-te: cala.
É inútil teu pranto,
de nada nos vale.
De que te adianta?
Cala-te, é tarde:
teu vate descansa.

27 de ago. de 2010

Sem Trégua

Quem mediará o conflito?
Quem imporá o armistício?
Quem poderá dar abrigo,
conceder santuário a este aflito,
se a guerra é minha comigo?
Que força? Que deus?
Quem conterá o inimigo,
separará eu e eu?

Observador

Estalidos sobre o asfalto.
O staccato do teu passo
me toma os ouvidos de assalto.

Frio na barriga, arrepio.
Tornozelos, panturrilhas.
Escalas o meio-fio.

Flutuas de salto alto.
És pernas e saia curta:
cada passo, um sobressalto.

23 de ago. de 2010

Fofuchice I

Um segredo pra amar bem
(amor é ciência e arte):

O saber apaixonar-se,
again and over again,
por um só e o mesmo alguém.

19 de ago. de 2010

Barfly

Sonhava ter no copo dois dedos
das águas abençoadas do Lethes
e esquecer-se de si em degredo;
e achar refúgio, ainda que breve;
mas é a visão da própria dor
que o fundo do copo reflete.
E a boca do copo é o Equador:
abraça seu mundo e o circunscreve.

16 de ago. de 2010

Trouxa

Quem mandou, também, paspalho,
resolver largar o cigarro
logo agora que ela foi viajar a trabalho?
Agora fica aí,
mal-humorado pra caralho,
dormindo toda a tarde,
passando a noite acordado,
sem saber se essa azia
é por causa da saudade
e da casa vazia,
ou se é só ansiedade
e hiponicotinemia.

15 de ago. de 2010

Tudo

Não te vou comparar às estrelas,
nem ao fresco do sereno,
à luz limpa da lua cheia;
qualquer uma dessas coisas
por si só é mesquinha e pequena.
(és a noite)

E não vou dizer de ti que és minha
e, quando não mais o fores,
jamais pensarei, “a tinha”.
Quem, afinal, poderia
– sendo um só – para si ter-te toda?
(és a vida)

E sequer julgarei que és apenas
a mulher que me chama de amado.
Quem sou eu para impor-te cadeias?
Não és só quem me abraça no escuro,
nem somente quem dorme ao meu lado.
(és-me tudo)

14 de ago. de 2010

Abscesso

Irritante, perigosa, um corpo estranho,
como areia que penetra na ferida,
uma frase se insinua pelo ouvido
alojando-se no fundo do meu crânio,
onde agrega a si mais frases e palavras
e um dia, finalmente, estoura em verso.

O processo formativo do poema
se assemelha, muitas vezes, ao do abscesso.

11 de ago. de 2010

Auto-jabá: entrevista!


O Marcelo Novaes me entrevistou para o seu "Bloco de Notas". Tá aqui.

6 de ago. de 2010

Da Responsabilidade do Autor

“Mas, menino, isso lá é poesia?”,
reclamam os que veem,
no que escrevo, baixaria.

Escrever desse jeito, afirmam,
não condiz com alguém assim,
quatrocentão, de boa estirpe.

Mas que culpa tenho eu
se a musa às vezes inventa
de brindar-me com um strip?

5 de ago. de 2010

Debalde

Procurei na poesia,
nas palavras do vate –
fosse no literal,
fosse nas entrelinhas –
um sinal qualquer de verdade.

Mas debalde:
todo poema é mentira;
todo poeta é uma fraude,
mitômano armado de lira.

2 de ago. de 2010

Trajeto

Parto do alto.
Paro atrás da orelha esquerda,
onde se concentra, intenso,
algum truque olfativo de Kenzo.

Toco a nuca, onde o cabelo
gradualmente se transforma
na penugem fina
que te desce clara pelas costas;
na penugem que se eriça
quando explora minha língua
cada vão da tua espinha.

Olho pra cima
ao som de um gemido teu.
Por um segundo assim me distraio
(por cima do ombro direito
tu me olhas de soslaio).
Acolho nas mãos os teus seios,
de novo enceto a jornada
a um destino certo — tu —
em que me perco e perco meu norte

a caminho do teu sul.

Lullaby

O vento assobia
ao dobrar cada canto
da escadaria.

O vento convida,
com sua cantiga,
a ninar.

E não mais despertar.