28 de jul. de 2010

Inconstante

Se uma hora queres isto,
logo após não queres mais
e ora dizes, "quero aquilo",
ora dizes, "tanto faz".
É inconteste teu direito,
prerrogativa de fêmea:
ser pra sempre, por enquanto,
o que nunca foste antes,
inconstante o tempo todo,
permanentemente efêmera.

20 de jul. de 2010

A um Estudante Desencantado

[este é um dos textos com que participei do 5º Desafio dos Escritores. O tom cômico foi a maneira que encontrei para lidar com o tema — aconselhar um estudante de economia — sem descambar para o recurso óbvio do construtivo e edificante]

Recebi com tristeza, prezado pupilo,
teu bilhete dizendo que tu desististe,
que trancaste a matrícula, e isso, e aquilo;
que não mais queres ser seguidor de Adam Smith

No papel de teu mestre, te quero tranquilo:
te retrata e prossegue. Vai em frente e insiste!
Não te deixes magoar por apenas ter lido
essa vil referência à matéria por "triste".

Sim, Carlyle a chamou "ciência triste", de fato,
"deprimente", ou "sombria", por outros relatos,
mas o fez ao falar das ideias de Malthus,
que era, bem sabes tu, pessimista e um chato.

Quem cunhou esse epíteto pouco sabia
que não há absolutos em economia.

15 de jul. de 2010

Tempo

Eterna dança de roda,
um baile estático e mudo,
uma ciranda de rocha.
As pedras dançam sem pressa
e giram junto com o mundo
(seu tempo se conta em eras).

Canta como dança a pedra:
pra si e não para a gente.
A voz da pedra é interna,
sua cantiga é silente.
Antes cantasse mais alto
e desse a quem ouvisse
a voz que vem do basalto
lição, ainda que triste:

"O construtor, sendo humano,
é breve, mortal, finito
(seu tempo se conta em anos,
não é o tempo do granito).
E finda a vida nada sobra
a não ser, talvez, a obra."

13 de jul. de 2010

Legado

Tens aqui a minha carta-testamento.
Com tristeza é que te deixo este legado.
Preconceitos e ideais equivocados
são o triste patrimônio que te lego.
Este dote que confio a ti, lamento,
é o mesmo que a mim antes foi deixado.
O que tens por tua herança é o mesmo fardo
que a mim veio de meus pais e que carrego,
acrescido das escolhas que fiz, cego,
convencido de que defender o lado
que pensava ser o meu era correto.

Me perdoa se te deito sobre as costas
a partilha que ora vês a ti imposta.
Olha bem o que te deixo por espólio,
o quinhão que te restou dos meus enganos:
as perguntas a que nunca dei resposta,
estas crenças que serviram-me de antolhos
e as mentiras que aceitei durante anos,

Dá ouvidos às palavras que te digo,
te liberta da ilusão a que te apegas,
o conselho que te dou, guarda contigo:
se tu tomas teu irmão por inimigo,
se as fronteiras entre esta e outras terras
são tão falsas quanto falso é o perigo,
de que importa se é vencida ou não a guerra?

Este é o saldo da minha vida que te cabe,
o saber, ainda em tempo, da verdade
pra que, espero, ao sabê-la não cometas
tantos erros quanto eu em tua idade.
Que tu possas ter por pátria este planeta
e que tenhas por nação a humanidade.

11 de jul. de 2010

Misantropo

Covil de concreto e de vidro,
arquivo das perdas e danos
causados por mim a mim mesmo.
Covil de concreto em que vivo
dos frutos de erros e enganos.
Caverna de vidro em que habito,
varado de dor e tormento.

Recebo a visita do vento
que vem me fazer companhia.
Relembra as escolhas que fiz,
sementes plantadas há tempo,
brotadas em erva daninha.

Procuro por ecos de mim
na torre de vidro e concreto –
suplentes no mundo moderno
do mítico e puro marfim.

Abraça-me o vento no escuro
enquanto a mim mesmo maldigo.
E os ecos de mim que procuro
(em vão) em milhares de livros
não há, vez que são, eu bem sei,
os filhos que nunca terei.

10 de jul. de 2010

Ímpio

Como vim parar aqui?
Não sei ao certo, confesso.
Já tentei me recordar,
mas sem nunca ter sucesso.

Deve ter sido acidente,
ou então morte matada,
vitimado em latrocínio
num farol, de madrugada.

Afinal, meu hemograma
mais recente foi perfeito
e o doutor me disse são
depois de auscultar meu peito.

O que quer que tenha sido,
disse à vida "até a vista";
faleci, ou fui a óbito,
Como dizem os legistas.

Qual não foi minha surpresa
- eu, que fora sempre incréu -
ao me ver ali, de cara
pro portão que dá pro Céu.

E pensei com meus botões:
"Poxa vida, quem diria
que um ateu tal como eu
estaria aqui um dia?"

E foi justo nessa hora
Que acenou pra mim um anjo
Tomei isso por convite,
Sem demora fui entrando.

"Alto lá!" gritou o tal.
"Tá pensando que é assim?
Aqui temos um processo,
só se entra com check-in."

Maldizendo os burocratas,
lá fui eu tentar a sorte.
E avisei de pronto o gajo:
"Olha, tou sem passaporte."

E o anjão me disse, "Filho,
Isso, aqui, não é problema
o processo é muito simples,
venha cá e nada tema."

Me estendeu um papelzinho
E me deu uma caneta:
"Bota aqui sua rubrica
pra dizer 'tchau' ao capeta."

Foi então que vi ao longe,
Passeando de mãos dadas,
Entretidos em conversa,
Mussolini e Torquemada

Perguntei, então, ao anjo,
"Me responda, ó, potestade:
por que estão aqui os dois
em vez de fritar no Hades?"

Me subiu, então, o sangue
e me deu siricotico.
Rasguei o contrato ao meio
e bradei, "Aqui não fico!"

"Palhaçada!", prossegui.
"Olha aqui, seu querubim,
uma vizinhança dessas
com certeza não é pra mim".

Veio então a trovoada,
pretejou o céu anil,
o anjo deu uma gargalhada
e o chão do céu se abriu.

"Vai-te embora!" ele gritou,
me empurrando, a altos brados.
Ainda pude responder,
"Pois vou, sim, e é de bom grado!"

Refleti durante a queda,
"Que se dane essa doutrina.
Me recuso a ser comparsa
disso que ali se ensina."

Recebeu-me aqui no inferno
um capeta sorridente.
"Que demora", disse ele.
"Vem aqui falar com a gente!"

Resignado à danação,
Outra vez me vi surpreso:
encontrei nas profundezas
meus heróis da vida em peso.

Não que aqui seja perfeito
(a bagunça é muito grande),
mas divido a eternidade
com Platão, Sidarta e Gandhi.

9 de jul. de 2010

Escuta

Se pensas que não tens fuga ou saída,
permite que meus versos te encorajem.
Escuta quem já fez essa viagem,
retoma já as rédeas da tua vida.

Reclamas da existência de criado,
mas dela não escapas por temor.
Tu és o teu senhor e o teu feitor:
és tu quem te mantém escravizado

Preferes a anonímia da manada
a erguer tua cabeça em desafio.
Por como te conduzes te avalio:
ao ser mais um apenas, tu és nada.

Tamanho é teu pavor de andar sozinho
que renovas teus grilhões a cada dia:
se pensas, atrevido, em alforria,
castigas-te a ti mesmo em pelourinho

A algema que te impões te faz covarde.
Acorda, Zé ninguém, que já é tarde!
Te afasta do rebanho de que és parte,
ou pasta em servidão até o abate.

8 de jul. de 2010

Pretérito mais que Perfeito

A memória? Ora, a memória!
É minha e dela faço o que quero.
E se recordo o que bem me apraz,
Zás-trás apago e reduzo a zero
Tudo aquilo a que não me apego:
Sou o autor de minha história,
Editor de tudo o que lembro.
O que incomoda, jogo fora
E o que falta, trago pra dentro,
De tal maneira e sorte que, agora,
Se me der um déjà-vu, um flashback,
Não restarão quaisquer momentos
Em que eu erre, ou falhe, ou peque.
Só lembrar do que é bom, por que não?
E se eu por acaso, algum dia,
Ceder à tentação da autobiografia,
Sairá com certeza uma obra de ficção.

6 de jul. de 2010

Paleontologia

Os amores de ontem se foram.

Quando muito,
emergem vestígios
como ossadas na falésia:

Os restos petrificados
de monstros e feras
terrores de outrora
que a morte fez dóceis.

Os amores de ontem? São fósseis.

Lamento da Mulher que não Fui

(Este texto ganhou o prêmio de originalidade no 5o. Desafio dos Escritores. A "missão" era escrever algo como as memórias póstumas de alguma personagem da literatura. A que me coube por sorteio foi Diadorim)

Eis que deito-me em leito de terra
Por seis palmos de terra coberta
E me vejo a viver sem ter fim
O caminho que fiz nessa vida.

Por Reinaldo me fiz conhecida.
Do meu nome de pia, Maria
Deodorina Bettancourt Marins,
Quase todo me fiz abrir mão
E me fiz conhecer Diadorim
Por aquele que foi para mim
Céu e inferno no chão do sertão.

Esta terra que agora me cobre
A um só tempo me pesa e me acolhe,
Qual talvez me acolhesse, pesado,
Riobaldo em mim sobre a cama.

É perdido pra mim Tatarana,
Mas de que me adianta chorar
Se fui eu que escolhi esse fardo?
Se meu choro só os vermes terão?
Se eu não o quis ter ao meu lado
Por marido em vez de soldado?
Meu é o pranto no chão do sertão.

Esta cova onde faço morada,
Esta cama na qual fui velada,
É onde durmo esse sono sem paz
Que me traz a ferida mortal.

Encontrei no sertão meu final
No cumprir da demanda sagrada
De matar quem tirou-me meu pai.
Mas matar quem o deitou por chão
Me custou preço alto demais:
No cruzar cá-pra-lá de punhais
Caí morta no chão do sertão.

Neste chão que hoje é meu abrigo
Só me resta chorar pelo amigo
De quem, mais que tenente, queria
E devia ter sido mulher.

Mas a vida nos faz como quer.
Não teria o jagunço Riobaldo,
Se não fosse minha honra de filha,
Sido meu por marido e varão?
Não teria ele feito família
Ao meu lado e não de Otacília?
Dura é a vida no grande sertão.