26 de nov. de 2010

Cana

Que pensaram as araras,
divisando ao longe as naus
naquele dia de abril?
Que terão pensado as onças,
as tainhas e os saguis
quando os botes do homem branco
vieram dar ao litoral?
Teriam previsto o destino?
Teriam sentido que ali
começava a impor-se a ordem?
Quem sabe se anteviram o final
escrito nas entrelinhas
das mensagens de Cabral
e da carta de Caminha?
Se pressentiram o fim do caos,
do caos darwinista,
do caos colorido,
do caos tropical?
Terão percebido, aquele dia,
que logo, bem logo veriam,
no lugar do Santo Caos,
monocultura, monotonia?

22 de nov. de 2010

Busca

Busco sem sucesso,
mas insisto e não descanso
enquanto a busca não tenha fim:
em algum lugar desse deserto branco,
vinte e uma polegadas, wide-screen,
a musa se esconde entre pixels,
dá risada e faz pouco de mim.

21 de nov. de 2010

Aterro Sanitário

Entre os dejetos e os descartes
(Darwin ou Lavoisier?),
no meio daquilo que ninguém quer
bem no meio, ali,
daquilo que seria um hodierno sambaqui,
o mais banal dos embates.

Cravam as presas pequeninas,
arrastam garras e dentes
nas carnes do oponente,
dois ratos e uma criança com fome.

Quem ganhar come.

18 de nov. de 2010

Skyline

Silhueta geométrica
contra o fogo do poente.
Um perfil em tons de cinza
sobre fundo incandescente.
Um retrato da cidade –
sucessão interminável
de estantes de guardar gente.

5 de nov. de 2010

Cúpido

Cúpido, peço e não mo recusas:
entre as curvas
me revelas e descubro
teu tesouro mais oculto.

Cubro-te: atinges o cume
e sucumbes em decúbito.

4 de nov. de 2010

Alzheimer

Além das rachaduras da fachada.
Além dos portões,
do ranger das dobradiças,
depois do hall de entrada:
o velho salão.

Que é feito das festas
onde hoje há só teias e traças?
Onde hoje poeira e luz baça,
outrora boleros,
outrora foxtrotes e valsas.
Que é do rodar de vestidos?
Dos tules e tafetás?
Das risadas dos convivas?

Nada resta no velho salão
a não ser a vaga memória
daquilo que foi um dia:
o centro da casa em ruínas.

No meio do assoalho,
uma joia esquecida
brilha de vez em quando
sob a luz das claraboias,
e o salão se lembra e chora.