30 de set. de 2009

Fútil

Agarra a gárgula pela garganta.
Garroteia.
Amarra a aranha na própria teia.
Põe pra correr o próprio Cão.
Mata o monstro e mostra o pau.
(em vão)
De que te vale qualquer façanha,
herói, se, afinal,
a donzela que amas te odeia?

29 de set. de 2009

Sobre um mote

("Recaída é o nickname do diabo." - Tati Bernardi)

O certo seria, no fim duma história,
deixar para lá e se dar por contente.
Deu certo? Beleza. Não deu? Tudo joia.
Azar, paciência. E bola pra frente.

Problema é a gente ficar nessa noia,
de achar que o tal fim pode ser diferente,
sonhar fantasias que em nada se apoiam,
não ver que é um erro e tentar novamente.

Descaminho que começa onde termina,
cicatriz que se desdobra em chaga aberta,
cobra estúpida que morde o próprio rabo.

Insistência em conhecer uma só sina,
um destino só que nunca se completa.
Recaída é o nickname do diabo.

26 de set. de 2009

V. zoster

Algumas mulheres são doenças.
Vêm, vão, deixam sequelas.
Algumas, mas não aquela.
Se doença era, era catapora:
Deixou marcas? Sim, deixou.
Mas depois foram embora.

24 de set. de 2009

Notícias populares

O mau poeta acossa a musa.
Não admite recusa,
nem se conforma com um “não”.
O mau poeta não desiste:
protocolo, formulário em três vias,
requerimento, recurso — em vão.
Ataca, então, rasga-lhe a blusa:
abuso em busca de poesia,
estupro à guisa de inspiração.
Crava os dentes no peito
ainda quente, embora inerte,
e suga até que repleto
do sangue que o seio verte.
Foge dali safisteito,
pensando com seus botões,
“Agora me sai um poema que preste”.

21 de set. de 2009

Caco

Miguel escolheu a faculdade por eliminação: vinha de uma dessas famílias tradicionais cujos bons filhos estudam medicina, direito, administração, engenharia, economia. Não gostava de matemática e biológicas nunca tinham sido seu forte. Sobrou o direito. Quando passou no vestibular, não tinha nem pensado em ser qualquer outra coisa além de advogado cível. Direito tributário, empresarial. Alguma coisa assim.

Apaixonou-se pelo direito penal no meio do segundo ano. Arrumou estágio em uma ONG de assessoria jurídica. Trabalho voluntário, no fundo: gastava mais em transporte e alimentação do que ganhava. Mas ficou fascinado com o mundo antes desconhecido de quem tinha nascido ferrado. Começou a ver as coisas de um jeito diferente, como as viam os ladrões de galinha que ajudou a livrar de penas pesadas e descabidas. Decidiu que o que queria era impedir, como pudesse, que fosse para a cadeia quem não precisasse mesmo estar lá.

Para desespero dos pais, resolveu ser delegado. Formado, prestou concurso e passou na primeira tentativa. Foi mandado para um distritozinho do interior (onde, ironicamente, chegou a investigar casos reais de furto de galinhas) e ficou conhecido como alguém que não tinha medo de mandar passear os grandes da região quando se tratava de quem nada ou pouco devesse à Justiça. Criou fama de incorruptível. Chamou a atenção dos movimentos sociais da região. Acabou aparecendo numa grande revista semanal como exemplo da boa polícia.

***

Acordou de madrugada com o barulho do toque do celular. Era um amigo da família, pediatra dos seus sobrinhos, que por acaso tinha sítio na região

“Mike, preciso da sua ajuda.”

“Que aconteceu?” Não era raro parentes e amigos lhe pedirem conselhos.

“Seguinte: o Caco, meu filho mais velho, você conhece, foi parado numa blitz aí onde você está. Ele tava com maconha, cara, acredita? O Caco, com maconha? E ainda se apavorou e fez a burrada de dizer que não era dele.”

“Porra, Luiz. Que você quer que eu faça?”

“Cara, pelo amor de deus, me quebra essa. O Caco é um garoto legal, estudioso. Fez uma puta burrada, mas não merece se ferrar por causa disso. Fala com os caras, explica pra eles.”

O fato é que o Caco era, mesmo, um garoto legal. Não merecia ser preso, do mesmo jeito que não mereciam aqueles ladrões de galinha todos. Resolveu ir até onde tinha combinado com a PM montar o bloqueio daquele começo de fim-de-semana prolongado. Chegando lá veria se dava para fazer alguma coisa. Vestiu-se e foi a pé mesmo para não chamar atenção.

De longe viu as viaturas de giroflex ligado e o Caco sentado no meio fio com a cabeça baixa, apoiada nas mãos. Aproximou-se do tenente que comandava a operação, cumprimentou e explicou que o rapaz era filho de um amigo. Perguntou se o menino estava bem quando foi parado. “Tava, delegado. Nem bebido nada tinha. Fez bafômetro e tudo.” “A documentação tá em ordem?” Estava. “Quanto ele tava carregando?” “Umas dez gramas.” Deixou passar batido o erro de concordância. Pensou um pouco, tomou coragem. “Tenente, tem jeito de livrar a cara do menino? Eu me responsabilizo por ele.” Liberou, claro. Aliás, nem Miguel nem Caco tinham como saber disso, mas o tenente ia liberar de qualquer jeito. Ficou com pena do moleque.

Entrou no carro do filho do amigo com o menino no banco do passageiro e foi para casa. No caminho, deu-lhe uma bronca de deixar calo e mandou o garoto ligar para o pai, dizer que estava tudo em ordem e que passaria a noite na casa do “tio”. Estacionou na rua e entraram. Mandou o moleque dormir no sofá. O pai viria no dia seguinte e seguiria o menino de carro até São Paulo para ter certeza de que não iria se meter de novo em encrenca.

Tomavam café-da-manhã quando Luiz chegou, agradecendo, com cara de quem está quase chorando de vergonha. E trazendo uma garrafa de uísque dessas que custam quase metade do vencimento de um delegado em começo de carreira. “Que é isso, Luiz. Não posso aceitar.” “Bobagem, Mike. Isso não é propina nem nada, é uma demonstração de gratidão. Aceita, por favor; eu vou me sentir menos mal se você aceitar.”

***

Foi transferido para a Corregedoria na Capital depois de alguns anos de bons serviços. A aquela altura já tinha uma respeitável coleção de garrafas de puro malte, entre outras coisas.

18 de set. de 2009

SM

Há momentos para a delicadeza das rendas.
Mas não hoje: corpete de couro, correntes.
É noite de algemas e vendas.
E ninguém tem nada com isso,
A não ser a gente.

Você se rende, se entrega,
Se dá ao luxo da confiança cega
No carrasco que elegeu.
Em pé ao pé do leito, o tal eleito, eu,
Te faço brinquedo e deleite.

Te quero dada de corpo e mente,
Te quero em bondage, amada, afoita,
Te quero em estro, lasciva, felina,
Te ouvir gemer meu nome entre dentes.
A cada meu toque de afago-açoite
E cada beijo quente da parafina.

Se quiser, depois a gente troca,
Você senhora, eu submisso.
Danem-se vizinhos e fofocas!
Ninguém tem nada com isso.
Há muitas e várias formas de gozo
E titio Sade ficaria orgulhoso.

9 de set. de 2009

Vazia

(originalmente publicado na Falópios sob o pseudônimo "Gilda Mineli")

Sou um resto de nada hoje em dia,
Sou refém e de mim sentinela;
A mulher que, de triste, se via
Personagem na voz de Florbela;

A garota que só no seu canto
Tinha medo do mundo lá fora
E cantava baixinho enquanto
Lia amores de Lygia e de Cora;

A menina que amor nenhum tinha
E ninguém quem seus sonhos ouvisse
E chorava seu choro – sozinha –
Com Cecilia, com Hilda e Clarice;

Que em versos buscava guarida
(de Clarice, de Lygia e de Hilda)
E num mar de si mesma era ilha
(Coralina, Florbela e Cecilia).