20 de fev. de 2009

Quarta de Cinzas

COMENTARISTA (1): Muito bem, caro telespectador, bem-vindo a mais uma cobertura exclusiiiiiva da maior festa do mundo, o maior show da Terra, o magnífico Carnavaletudo da Cidade Maravilhosa. Tudo pronto para o desfile? Marcos?

Repórter (1): Do lado de cá, tudo pronto! A agremiação está a postos e o carnavalesco-em-chefe pronuncia suas últimas palavras de incentivo. Vamos ouvir um pouquinho:

Carnavalesco-em-chefe da UdAdA: (...) e se nóish pierrrdeu no ano passado, foi dje sacanag, purrrque eleish inflingiro aish riegra, tá sabiendo? Esse ano é nóish que vai gritá: “Pierrrdeu, preibói! Pierrrdeu”! E vai tê sangue, vai tê suó, vai tê lágrima! Maish esse ano eleish num ganha, não! Esse ano num vai tê pra ninguém!”

Repórter (1): Ouvimos as palavras do líder máximo da UdAdA. Com você, Carlão!

COM (1): Obrigado, Marcos. Luiz, depois vou pedir pra você comentar esse trecho do discurso. Mas, antes, vamos ver como estão as coisas do outro lado. Vaneska?

Repórter (2): Boa noite, Carlos, boa noite telespectador. Na frente oposta, tudo pronto, ou quase. Parece que tem algum problema com os adereços de uma ala, mas o porta-voz da escola me disse que vai estar tudo em ordem até a saída aqui da concentração. Um detalhe, Carlão: eles estão prometendo uma grande novidade para a bateria!

COM (1): Obrigado, Vaneska! Muito bem. Luiz, você tem alguma coisa para falar da reclamação que acabamos de ouvir sobre quebra do regulamento?

COM (2): Tenho, sim, Quer saber? Isso é frescura. O regulamento não fala nada, mas também não proíbe! Se todo o mundo ficar só no pé da letra da regra, não tem inovação, a festa não progride! Eu acho que o que eles fizeram no ano passado foi corajoso, se você quer saber. E taí! Agora as outras escolas também vão ter que inventar coisa nova pra ganhar. Isso é arte popular, não pode querer botar muita regra que azeda!

COM (1): Mas a coisa toda foi muito discutida... teve até envolvimento da ONU!

COM (2): Frescura! É Carnaval! A ONU não tem nada a ver com isso!

COM (1): Obrigado Luiz! Lembramos ao telespectador que as opiniões dos comentaristas não refletem necessariamente as da emissora. Pois bem. As escolas estão em aquecimento, as equipes técnicas estão dando aquela arrumadinha de última hora... vamos aproveitar para repassar as regras, com nossa convidada especial, a Comandante da Polícia Militar do Estado do Rio, Cel. Rosinha de Copacabana!

COM (3): Obrigada, Carlão. A gente não tem muito tempo, então vamos lá. É muito simples, aquela coisa de sempre: os jurados levam em conta originalidade, beleza, desenvoltura e letra do enredo, mas nada disso importa muito. As escolas começam cada uma em uma ponta da avenida e se encontram no meio. Ganha quem chegar do outro lado com mais integrantes vivos. Vivo sem ferimento vale um ponto; ferido que puder se locomover sozinho vale meio; e de maca vale zero-vinte-e-cinco. Depois da confusão do ano passado, a Liga resolveu adotar as Regras de Convenção de Genebra, então podem tirar o cavalinho da chuva: nesta edição não vai ter gás mostarda, já que usar armas químicas custa meio ponto e, com o desfile competitivo como anda, isso pode fazer a diferença entre a vitória e a derrota.. Mas é uma boa mudança porque vai forçar as agremiações a inovar dentro do que é permitido.

COM (1): Obrigado, Comandante Rosinha! Muito bem, amigos telespectadores! Últimos segundos antes de começar a festa! Este ano, o G.R.E.S.C. CV vem com o seu enredo acid-fusion transgênero: “Von Clausewitz, minha Mulata”. Do outro lado vem a Unidos dos Amigos dos Amigos vem com um enredo eletrizante e muito ligado às raízes da nossa cultura popular, o lírico samba-funk “Pol Pot e Beria Sambando no Micro-ondas”, uma homenagem singela a dois grandes pensadores tão admirados pela nossa gente. E lembramos que, para este ano, a AdA promete uma novidade inesquecível!

(morteiros disparam granadas de fósforo branco que iluminam a passarela, marcando o início do desfile)

COM (1): Luiz, o que você tem a nos dizer sobre as comissões de frente?

COM (2): Olha, Carlos, a da AdA não tem nada de mais, se bem que eles estão prometendo alguma coisa nova logo em seguida, para o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira. Já a do CV é originalíssima: são 14 cães neuróticos executando uma bela coreografia.

Repórter (2): Carlão?

COM (1): Pois não, Vaneska?

Repórter (2): Carlão, a bateria do CV mal entrou na avenida e já se prepara para mostrar a tal surpresa. Não vão nem esperar fazer a cabeça de praia no recuo!

COM (3): Carlão, isso vai ser interessante...

COM (1): Por que, Comandante?

COM (3): É que eles pediram para a gente uma autorização especial... eu não vou falar o que é para não atrapalhar a festa, mas se prepare que vem coisa boa por aí!

(poucos metros depois da saída da concentração do CV, um clarão e um estrondo; segundos depois, toda a ala de Baianas Kamikazes da AdA é vaporizada)

COM (2): Que beleza! Que originalidade! Isso é que é arte popular, minha gente!

COM (1): Comandante?

COM (3): Pois é, Carlos. A surpresa era essa aí que você acabou de ver. Além dos seus já tradicionais surdos de kevlar e tamborins de repetição, este ano a bateria do CV veio com uma companhia de artilharia. São doze obuseiros auto-propulsionados M 108 de 105mm!

COM (1): Então era essa a grande surpresa do CV. Muito bem! Pena que o efeito não foi tão grande quanto poderia ter sido, não pegaram nenhum carro alegórico, só infantaria leve. Mas provavelmente, no ano que vem, eles já vão ter um pouco mais de experiência com balística.

Repórter (3): Carlão?

COM (1): Diga César!

Repórter (3): Carlão, eu estou aqui no meio da passarela, onde as duas escolas devem se encontrar daqui a segundos. A comissão de frente da AdA parecia um pouco recalcitrante, mas os técnicos jogaram gás de pimenta num deles e eles estão avançando de novo. E olha só, Carlão! A comissão da escola oponente parece que sentiu o cheiro de medo deles e pulou em cima! A coreografia desandou e isso vai custar pontos, mas os bichinhos estão mostrando a que vieram! Acabou de passar por mim um mastim que foi best in show no mundial do ano passado, arrastando pelo pé um membro da outra escola. E parece que já acabou, viu, Carlão?

COM (1): É uma pena... o confronto entre as comissões de frente costuma ser equilibrado e durar um pouco mais. Mas vamos em frente que a coisa aqui não para! Os dois primeiros casais já estão a apenas vinte metros um do outro, prestes a dar início ao mais belo momento do desfile, na minha modesta opinião. A porta-bandeira da AdA vem com uma lança simples, enquanto a do CV traz uma alabarda decorada com as cores da escola!

COM (2): Faz tempo que a gente não vê coisa nova nessa área...

COM (3): Ah, mas tem outra surpresa por aí! Vocês vão ver e é já!

(Durante a evolução, o mestre-sala da AdA puxa duas Ingram MAC-11 de dentro de sua túnica e esvazia os pentes sobre o casal da outra agremiação. Assim que pára de atirar, cai vítima de dobermans furiosos, enquanto a porta-bandeira luta bravamente contra um dogo argentino meio manco que termina empalado).

COM (2): Ah, isso sim! Que beleza! Isso é que é cultura popular!

COM (1): Não sei não... isso pode, Comandante?

COM (3): Pode sim, Carlão. Foge à tradição, mas não tem nada na regra que proíba.

COM (1): Eu acho uma pena... sempre apreciei essa tradição do combate apenas com armas brancas entre os primeiros casais...

COM (2): Se dependesse de você a gente ainda tava naquele negócio chato de uma escola por vez e só com dancinha pra cá, dancinha pra lá.

Repórter (3): Carlos, agora os dois primeiros carros alegóricos se aproximam do meio da Pista.

COM (3): Pois é, vamos ver como eles se saem. Por enquanto ninguém pontuou, já que a porta-bandeiras da AdA pisou num mina anti-pessoal que o CV plantou na entrada da concentração. E olha, gente, que vai ser equilibrado.

COM (1): Costuma ser, né? Mas explique para o telespectador, Comandante Rosinha.

COM (3): Os dois vêm com blindagem nível I e lança-chamas. Provavelmente vai dar M.A.D.

COM (2): Mutually Assured Destruction? Coisa mais sem graça...

(ao se aproximarem um do outro, os dois carros abrem fogo ao mesmo tempo, transformando um ao outro em pilhas de metal retorcido e nuvens de fumaça e purpurina)

Repórter (3): Carlão?

COM (1): Diga, César!

Repórter (3): Tem uma movimentação diferente por aqui, viu? Acho que vem aí a tal grande surpresa da AdA.

(de um carro alegórico da AdA ergue-se uma torre de metal em que está pendurada uma enorme tela de projeção. Sobre a tela, surgem números: 1:00 ... 00:59 ... 00:58)

COM (3): Essa eu não sei o que é... não tinha nada nos formulários sobre contagem regressiva...

(continua a contagem regressiva. Abaixo dos números, surge a mensagem: “Segundo lugar, nunca mais! Pelo sangue derramado dos nossos sambistas! Allah Uh Akhbar!”)

COM (3): Carlão, Meu contador Geiger tá dando uma leitura estranha... tem algo de errado aqui...

Repórter (3): Carlão, eu não tô entendendo muito bem o que está acontecendo, mas os integrantes da AdA estão amarrando faixas verdes na cabeça...

COM (2): Mas essa não é a cor deles! Vão perder pontos com isso!

COM (1): Cala a boca, Luiz!

COM (3): Meu deus do céu, foi por isso que eles invadiram Aramar!

(00:01 ... 00:00)

(dizem que o cogumelo foi visto até em Parati. Na quarta-feira, o pouco que restava da Região Metropolitana estava coberto de cinzas)

19 de fev. de 2009

Metamorfose

Ela era uma dessas pessoas que parecem fazer parar o mundo quando aparecem. Sabe essas borboletas azuis e grandes que tem na mata e que saem do meio das árvores e fazem todo o mundo ficar quieto, olhando, embasbacado? Ela era assim. Feita de brilho. Leve. Estonteante. De uma beleza tão completa que permite usar a palavra sublime, por mais cafona que seja, porque quando se justifica, quando é a única palavra possível, deixa de ser cafona para ser precisa. E a palavra é esta. Ela era sublime.

Mas a borboleta começou a perdeu a cor e a vontade de voar. Pousou em um canto qualquer e fez casulo.

Quando saiu, era só mais uma lagarta como qualquer outra.

15 de fev. de 2009

Mal-Entendido

“Que loucura”, pensou, enquanto acendia um cigarro no teto do prédio, único lugar do banco onde era permitido fumar. “Quem diria, um tempinho atrás, que eu ia estar nessa?" Cobertura na Vila Nova Conceição, carros importados na garagem do prédio, filhos no Graded, motorista para levar para cima e para baixo. "Como é que faço pra pagar tudo isso agora? Vai ser difícil, mas a gente dá um jeito. Vamos ter que cortar algumas coisas, claro, as crianças vão ter dificuldade para se adaptar. Mas algum jeito, a gente dá. O apartamento tá pago, até aí, tudo bem. Mas com condomínio de dez paus? Sem chance!”

Fumava e andava de um lado para o outro, tentando imaginar como ia explicar para a mulher que o trader superstar que ele era tinha feito uma burrada enorme. Que o hedge tinha desmontado e estourado na cara dele. Que ia para a rua, com certeza, assim que contasse para os sócios.

“Mas tudo bem, vai dar certo. A gente tem uma grana guardada. E com a venda do apartamento dá pra comprar um lugar mais simples e ainda sobra um bom pedaço. A gente se aguenta por uns tempos até a poeira baixar e eu arrumar outra coisa. Todo o mundo sabe que não foi culpa minha, que o mercado tem dessas coisas. Eu sou bom e o pessoal sabe disso. Pode até ser que numa corretora pequena, num banco menor, mas alguma coisa em arranjo. Pôxa, quem sabe eu volto a dar aula enquanto isso? Encaro a coisa como sabático, não como demissão!”

Estava resignado. Sabia o que ia acontecer e estava em paz com a situação. A vida tem altos e baixos, e coisa e tal. Aliás, só resignado, não: estava tranqüilo, pela primeira vez em um bom tempo. Mais do que isso. Por incrível que pareça, estava até feliz. A idéia de passar um tempo longe da pressão da mesa de derivativos parecia cada vez mais atraente. Ia dar tudo certo.

Chegou mais perto do parapeito para ver, provavelmente pela última vez, o jogo de luzes que formavam os holofotes da fonte do saguão externo do prédio. Sorriu, deu mais uma tragada e esticou o braço para jogar a bituca lá embaixo. Na mesma hora, um carro furou o farol da Tabapuã e foi pego em cheio por um ônibus que vinha pela Faria Lima. Somados o corpo meio projetado para fora do prédio, o impulso para jogar o cigarro a uma boa distância e o susto da batida, caiu.

Ninguém, nem a mulher, nem a mãe, imaginou que não tivesse sido suicídio.

12 de fev. de 2009

Do Outro Lado

Paulo sabia que era perigoso, mas foi assim mesmo. Agora estava lá, perdido no meio do nada, sem comida e sem água. Por todos os lados, areia e mais areia. Não custava nada esperar mais um pouco e montar uma expedição. Mas acadêmico é tão ganancioso com a sua ciência quanto operador de bolsa, com spread de derivativo. Fez tudo escondido e às pressas, foi sozinho, sem saber muito bem o que estava fazendo. Não queria dividir a glória da descoberta com ninguém.

O mapa. Tinha encontrado o mapa enquanto arrumava a papelada do escritório do tio-avô, morto sem deixar filhos e famoso por acreditar em qualquer teoria obscura, por mais maluca que fosse, colecionador incansável de documentos obviamente forjados. Mas este mapa, não. Este era de verdade. Paulo era, provavelmente, a maior autoridade do país – do mundo!!! – em Alvar Nuñez. E o mapa tinha todas as características de um legítimo Cabeza de Vaca. E mostrava claramente a localização da cidade perdida.

Certo que o mapa iria levar à maior descoberta arqueológica das Américas desde Machu Pichu, pegou o primeiro vôo para Quito. Agora ali estava, no meio do deserto de Nazca, a dezenas de quilômetros do povoado mais próximo. A bateria do jipe tinha perdido a carga. Sem rádio e fora do alcance da rede de celular, o negócio era tentar chegar a pé até algum lugar.

Andava há horas. O sol queimava sua pele, mesmo com protetor solar FPS 60. Queimava seus olhos, mesmo com óculos escuros. Cozinhava os miolos. Sabia que logo morreria se não encontrasse ajuda. Ou, pelo menos, água. Já sentia os efeitos da desidratação; ia perder, já, já, o pouco que restava da capacidade de raciocinar. Sabia que estava começando a ter dificuldades para separar a realidade da fantasia: por duas vezes já tinha enchido a boca de terra, pensando que era água. Desespero. Caminhava com a cabeça baixa. Tropeçou e caiu.

Pensou em desistir. Mas, aos poucos, levantou e olhou em volta. E viu, a uns duzentos ou trezentos metros, uma formação rochosa. Se conseguisse subir nela, talvez do alto pudesse ver um rio, um lago, talvez até alguma cidade.

No deserto, é difícil ter uma boa noção de distância. A formação estava a quilômetros de distância. Quando finalmente chegou, já não andava: engatinhava. No estado em que estava, nem pensar em escalada. Começou a acompanhar o contorno da formação, já em franco delírio.

Depois de muito tempo, ou de alguns minutos, já não sabia dizer, mãos, cotovelos e joelhos em carne viva, sentiu a textura do solo mudar. À sua esquerda, um pequeno filete d’água escorria de uma rachadura na pedra, formando uma pequena poça. Convencido de que era apenas uma nova miragem, mas sem nada a perder, começou a lamber o chão. Desta vez era água de verdade. Bebeu e desmaiou.

Voltou a si depois do que provavelmente foram algumas horas. O muro, com o sol mais baixo, lançava uma boa sombra. Já se sentia melhor. Sentou e bebeu um pouco mais de água. Quase restabelecido, pensou de novo em escalar o rochedo e tentar encontrar algum sinal de civilização. Levantou e, afastando-se um pouco começou a procurar por falhas, saliências, qualquer coisa que pudesse usar para subir. Foi então que percebeu uma coisa que teria percebido muito antes se não estivesse delirando. As rachaduras eram uniformes demais. Não era uma rocha: era uma muralha!

Só podia ser a cidade perdida do mapa de Nuñez. Animado, Paulo encheu seu cantil e começou a andar ao longo da construção em busca de uma entrada. Mas andou, andou e andou, sem encontrar. Já escurecia. Decidiu parar por ali mesmo e continuar quando amanhecesse.
Acordou com o raiar do sol e voltou a procurar. Mais uma vez, andou por horas sem achar passagem nenhuma. Finalmente, viu uma poça d'água no chão e percebeu que tinha dado a volta completa. Um muro enorme, circular e sem entrada visível: devia estar enterrada na areia. O jeito era retomar o plano original e escalar. Felizmente, os encaixes entre as pedras não eram perfeitos e não faltavam pontos de apoio. Lenta e cuidadosamente, Paulo escalou a muralha. Devia ter uns trinta metros de altura, no mínimo. Escalava e pensava: do que os construtores tinham tanto medo, para criar algo tão grande? Do que estavam se protegendo?

Finalmente chegou ao topo. Passou as pernas para o outro lado e desceu. Se alguém estivesse do outro lado, talvez tivesse ouvido seus gritos.
Muros geralmente são construídos para proteger quem está do lado de dentro do que está do lado de fora. Mas há exceções.

4 de fev. de 2009

Brincadeira

“Fodeu”, disse o cavaleiro errante.
“Quebrei a espada, perdi a lança.
Dulcinéia e o traíra do Pança
fugiram no lombo do Rocinante.
E o que pensei que era só um moinho?
Putaquepariu, é um baita gigante!”