8 de dez. de 2009

Sarau no Skuantus Pub

Esse domingo, 06/12, Lúcia Gönczy e eu promovemos nosso primeiro sarau, com apoio do Skuantus Pub (Av. Moaci, 550, Moema) e da banda Olam Ein Sof (http://www.olameinsof.com/).

Sendo eu quem sou, sem saber marquei para o dia (e hora...) da final do futebol. Quem manda não acompanhar esporte? Mas ainda assim apareceu bastante gente: é bom saber que num fim de tarde de domingo, com sei lá eu quantos times grandes com chances de conquistar o campeonato, trinta ou quarenta pessoas saem de casa para ouvir música e um bando de malucos que insistem em escrever poemas.

A galera do Olam (que, para quem não conhece, toca um repertório medieval, renascentista e celta, além de composições próprias) fez duas entradas de meia hora, com direito até a versão acústica de uma música de sua outra banda, o Arum. Na boa, black metal tocado como dueto de violão ficou muito bacana! Valeu, Fernanda, Marcelo e David!

Além deles, Olga, que veio do Ceará especialmente para o sarau, tocou e cantou. E apresentaram-se os poetas Cesar Veneziani,Lúcia Gönczy, Ingrid, Ivone fs (que declamou poemas seus e um de Betty Vidigal), Mel, Marcia Matoso, Paulo Gomes, Regina Z., Renatinha, Rita Medusa e este vosso humilde criado. Desculpem se tiver esquecido alguém; qq coisa, me avisem que incluo os nomes no post.

Nosso "muito obrigado" a Arimondi, Aurora e toda a equipe do Skuantus, que abriu a casa para nós; ao Olam Ein Sof; a todos que se apresentaram; e, principalmente, a quem se dispôs a sair de casa para apoiar nossa experiência. Vamos repetir a dose em fevereiro. Enquanto isso, fiquem com as fotos do domingo passado:



Abraço,

Allan

26 de nov. de 2009

Parto

Não me peça calma,
nem tamanho apreço
pelo comedimento.
Só quero agora
rasgar a alma,
me virar do avesso,
te tirar de dentro

e ir embora.

24 de nov. de 2009

Ton-sur-ton

Agora não quero falar
de coisas coloridas,
bonitas, delicadas,
de flores e borboletas.
Não quero falar de nada.
Hoje estou monocromático.

Por que não cantar o cinza
duro, frio, onipresente?
Os diversos tons de cinza
sobre cinza da cidade?

E uma vez cantado o cinza,
concreto armado e neblina,
e pintada a cidade em P/B,
aí, sim, falar de flores
e até, talvez, borboletas.
Sobre o fundo de cimento
não mais apenas bonitas,
mas praticamente perfeitas.

23 de nov. de 2009

Apêndice

Para ela o cara era
pouco mais que um afterthought:
do soneto o estrambote.

O problema do coitado
é que, só, não tinha jeito:
estrambote sem soneto.

16 de nov. de 2009

Terra Arrasada

Bateste em franca retirada.
Te ocultaste além do horizonte,
mulher que outrora chamei “Amada”.
E quem saberá dizer onde, e quão longe,
fica a muralha que te esconde?
A cama que foi nossa um dia
– e, por mim, ainda seria –
é o leito de um rio morto
(antes água, hoje lodo).
Entre uma margem e outra,
sumidouro, atoleiro, fosso:
queimaste a última ponte,
não resta vau, nem passagem,
e nem mesmo o próprio Caronte
se atreveria a fazer tal viagem.
Da minha margem diviso a tua,
que por léguas ao fundo e ao largo
fizeste estéril, calcinada e nua,
como quem dissesse, “Delenda Cartago”.

12 de nov. de 2009

Melhor

Quem sabe, um dia desses,
não faço um texto bonito,
com palavras que ninguém nunca diz?
Coisas como, sei lá, "plenilúnio",
"melenas", "primaveril".
Quem sabe não dou sorte
e emplaco uma mesóclise
de dar inveja aos parnasianos?
Mas não, melhor não mudar nada,
nem tentar escrever
como faziam há duzentos anos:
não dá pra ser o que eu não sou.
Prefiro escrever do meu jeito,
verso, prosa e rock'n'roll.

11 de nov. de 2009

Blecaute

Era pleno horário nobre
e apagaram a cidade
(blecaute, meu bem, blecaute).
Ainda bem que nós nos temos
e com quê passar o tempo
pelo tempo que a luz falte.

9 de nov. de 2009

Perspectiva

Como se sabe, duas paralelas
só se encontram no infinito.
Vai ver que somos como elas
e que é justamente por isso
que sempre faço papel de otário:
seu ponto de fuga é ao contrário.

29 de out. de 2009

Lápis de Cor

Em novembro a força da gravidade
E os manacás, ipês, jacarandás
Fazem das calçadas da cidade
Uma caixa de crayons da Caran d’Ache.

28 de out. de 2009

Ração Premium

Mora dentro do meu peito um cão pastor
que alimento todo dia só de sangue
de unicórnios cor-de-rosa e furta-cor
e de lindos e gorduchos teletubbies.
Quero mais que se estrumbique, que se exploda
quem critique, denuncie, quem comente
E quem diga ser estranha essa dieta
E que o bicho não hesite, antes morda
com vontade a bunda mole dessa gente
tão politica(la)mente(-se) correta.
tão politica(la)mente(-se)

27 de out. de 2009

Subreal

Escrever um poema catarse,
rasgar, com pena de aço,
a pele fina do lado
de dentro do braço.
Escrever um poema vermelho:
copiar em sangue e pus
a imagem no espelho
de olhos de cão andaluz.

22 de out. de 2009

Dinastia

(postado originalmente no blog gótico Vale das Sombras - link na lista ao lado)

Toma o dom desta oferenda:
fecha os olhos, ergue o queixo
sente os dentes na garganta.
O presente que te deixo
é a força, amor, que espanta
esta dor que te atormenta.

Não há pena, te asseguro,
Pra quem vença a própria morte
(não há deuses, nem inferno).
Te farei minha consorte,
Serei teu marido eterno:
Reinaremos no escuro.

21 de out. de 2009

Anacronismo

Acreditem ou não, há quem diga
que hoje vivem aqui velhos mitos
degredados da Hélade antiga
e dos bosques da Arcádia banidos.

Que uma dríade ainda está viva,
escondida no caos paulistano,
disfarçando-se de executiva,
por detrás de orçamentos e planos.

E que um fauno usa roupas de grife,
camuflando do jeito que pode
sua cauda, seus pelos, seus chifres,
os seus cascos e patas de bode.

A metrópole é um tipo de Hades,
é um mundo distante do seu,
onde matam um no outro as saudades
do que tinham à beira do Egeu.

17 de out. de 2009

Picadeiro

De frente pra platéia,
o cara equilibra rimas,
joga palavras pra cima
como quem faz malabarismo
com três motosserras ligadas
e seis granadas sem pino,
mas sabe que o público espera
é só pra ver se ele erra.
Só isso e mais nada.

30 de set. de 2009

Fútil

Agarra a gárgula pela garganta.
Garroteia.
Amarra a aranha na própria teia.
Põe pra correr o próprio Cão.
Mata o monstro e mostra o pau.
(em vão)
De que te vale qualquer façanha,
herói, se, afinal,
a donzela que amas te odeia?

29 de set. de 2009

Sobre um mote

("Recaída é o nickname do diabo." - Tati Bernardi)

O certo seria, no fim duma história,
deixar para lá e se dar por contente.
Deu certo? Beleza. Não deu? Tudo joia.
Azar, paciência. E bola pra frente.

Problema é a gente ficar nessa noia,
de achar que o tal fim pode ser diferente,
sonhar fantasias que em nada se apoiam,
não ver que é um erro e tentar novamente.

Descaminho que começa onde termina,
cicatriz que se desdobra em chaga aberta,
cobra estúpida que morde o próprio rabo.

Insistência em conhecer uma só sina,
um destino só que nunca se completa.
Recaída é o nickname do diabo.

26 de set. de 2009

V. zoster

Algumas mulheres são doenças.
Vêm, vão, deixam sequelas.
Algumas, mas não aquela.
Se doença era, era catapora:
Deixou marcas? Sim, deixou.
Mas depois foram embora.

24 de set. de 2009

Notícias populares

O mau poeta acossa a musa.
Não admite recusa,
nem se conforma com um “não”.
O mau poeta não desiste:
protocolo, formulário em três vias,
requerimento, recurso — em vão.
Ataca, então, rasga-lhe a blusa:
abuso em busca de poesia,
estupro à guisa de inspiração.
Crava os dentes no peito
ainda quente, embora inerte,
e suga até que repleto
do sangue que o seio verte.
Foge dali safisteito,
pensando com seus botões,
“Agora me sai um poema que preste”.

21 de set. de 2009

Caco

Miguel escolheu a faculdade por eliminação: vinha de uma dessas famílias tradicionais cujos bons filhos estudam medicina, direito, administração, engenharia, economia. Não gostava de matemática e biológicas nunca tinham sido seu forte. Sobrou o direito. Quando passou no vestibular, não tinha nem pensado em ser qualquer outra coisa além de advogado cível. Direito tributário, empresarial. Alguma coisa assim.

Apaixonou-se pelo direito penal no meio do segundo ano. Arrumou estágio em uma ONG de assessoria jurídica. Trabalho voluntário, no fundo: gastava mais em transporte e alimentação do que ganhava. Mas ficou fascinado com o mundo antes desconhecido de quem tinha nascido ferrado. Começou a ver as coisas de um jeito diferente, como as viam os ladrões de galinha que ajudou a livrar de penas pesadas e descabidas. Decidiu que o que queria era impedir, como pudesse, que fosse para a cadeia quem não precisasse mesmo estar lá.

Para desespero dos pais, resolveu ser delegado. Formado, prestou concurso e passou na primeira tentativa. Foi mandado para um distritozinho do interior (onde, ironicamente, chegou a investigar casos reais de furto de galinhas) e ficou conhecido como alguém que não tinha medo de mandar passear os grandes da região quando se tratava de quem nada ou pouco devesse à Justiça. Criou fama de incorruptível. Chamou a atenção dos movimentos sociais da região. Acabou aparecendo numa grande revista semanal como exemplo da boa polícia.

***

Acordou de madrugada com o barulho do toque do celular. Era um amigo da família, pediatra dos seus sobrinhos, que por acaso tinha sítio na região

“Mike, preciso da sua ajuda.”

“Que aconteceu?” Não era raro parentes e amigos lhe pedirem conselhos.

“Seguinte: o Caco, meu filho mais velho, você conhece, foi parado numa blitz aí onde você está. Ele tava com maconha, cara, acredita? O Caco, com maconha? E ainda se apavorou e fez a burrada de dizer que não era dele.”

“Porra, Luiz. Que você quer que eu faça?”

“Cara, pelo amor de deus, me quebra essa. O Caco é um garoto legal, estudioso. Fez uma puta burrada, mas não merece se ferrar por causa disso. Fala com os caras, explica pra eles.”

O fato é que o Caco era, mesmo, um garoto legal. Não merecia ser preso, do mesmo jeito que não mereciam aqueles ladrões de galinha todos. Resolveu ir até onde tinha combinado com a PM montar o bloqueio daquele começo de fim-de-semana prolongado. Chegando lá veria se dava para fazer alguma coisa. Vestiu-se e foi a pé mesmo para não chamar atenção.

De longe viu as viaturas de giroflex ligado e o Caco sentado no meio fio com a cabeça baixa, apoiada nas mãos. Aproximou-se do tenente que comandava a operação, cumprimentou e explicou que o rapaz era filho de um amigo. Perguntou se o menino estava bem quando foi parado. “Tava, delegado. Nem bebido nada tinha. Fez bafômetro e tudo.” “A documentação tá em ordem?” Estava. “Quanto ele tava carregando?” “Umas dez gramas.” Deixou passar batido o erro de concordância. Pensou um pouco, tomou coragem. “Tenente, tem jeito de livrar a cara do menino? Eu me responsabilizo por ele.” Liberou, claro. Aliás, nem Miguel nem Caco tinham como saber disso, mas o tenente ia liberar de qualquer jeito. Ficou com pena do moleque.

Entrou no carro do filho do amigo com o menino no banco do passageiro e foi para casa. No caminho, deu-lhe uma bronca de deixar calo e mandou o garoto ligar para o pai, dizer que estava tudo em ordem e que passaria a noite na casa do “tio”. Estacionou na rua e entraram. Mandou o moleque dormir no sofá. O pai viria no dia seguinte e seguiria o menino de carro até São Paulo para ter certeza de que não iria se meter de novo em encrenca.

Tomavam café-da-manhã quando Luiz chegou, agradecendo, com cara de quem está quase chorando de vergonha. E trazendo uma garrafa de uísque dessas que custam quase metade do vencimento de um delegado em começo de carreira. “Que é isso, Luiz. Não posso aceitar.” “Bobagem, Mike. Isso não é propina nem nada, é uma demonstração de gratidão. Aceita, por favor; eu vou me sentir menos mal se você aceitar.”

***

Foi transferido para a Corregedoria na Capital depois de alguns anos de bons serviços. A aquela altura já tinha uma respeitável coleção de garrafas de puro malte, entre outras coisas.

18 de set. de 2009

SM

Há momentos para a delicadeza das rendas.
Mas não hoje: corpete de couro, correntes.
É noite de algemas e vendas.
E ninguém tem nada com isso,
A não ser a gente.

Você se rende, se entrega,
Se dá ao luxo da confiança cega
No carrasco que elegeu.
Em pé ao pé do leito, o tal eleito, eu,
Te faço brinquedo e deleite.

Te quero dada de corpo e mente,
Te quero em bondage, amada, afoita,
Te quero em estro, lasciva, felina,
Te ouvir gemer meu nome entre dentes.
A cada meu toque de afago-açoite
E cada beijo quente da parafina.

Se quiser, depois a gente troca,
Você senhora, eu submisso.
Danem-se vizinhos e fofocas!
Ninguém tem nada com isso.
Há muitas e várias formas de gozo
E titio Sade ficaria orgulhoso.

9 de set. de 2009

Vazia

(originalmente publicado na Falópios sob o pseudônimo "Gilda Mineli")

Sou um resto de nada hoje em dia,
Sou refém e de mim sentinela;
A mulher que, de triste, se via
Personagem na voz de Florbela;

A garota que só no seu canto
Tinha medo do mundo lá fora
E cantava baixinho enquanto
Lia amores de Lygia e de Cora;

A menina que amor nenhum tinha
E ninguém quem seus sonhos ouvisse
E chorava seu choro – sozinha –
Com Cecilia, com Hilda e Clarice;

Que em versos buscava guarida
(de Clarice, de Lygia e de Hilda)
E num mar de si mesma era ilha
(Coralina, Florbela e Cecilia).

26 de ago. de 2009

Confiança

Meia hora para o show. Anos atrás estaria acendendo o enésimo cigarro do dia e bebendo uísque ou vodka no gargalo. Ao contrário de tantos companheiros daquela época, nunca tinha caído na tentação das drogas mais pesadas; lhe bastavam a nicotina e o álcool. Os companheiros se foram, quase todos; ele ainda estava de pé – e às vezes se perguntava se valia a pena. Tinha largado tanto uma quanto o outro há anos e agora se contentava com um antiinflamatório e um analgésico engolidos com um gole de coca zero. Além da hipertensão, havia o diabetes.

Quinze minutos para o show. Estaria no enésimo cigarro mais dois a essas alturas. E naquele estado entre sóbrio e bêbado que com tanto cuidado cultivava. Observando os companheiros de banda mais para lá do que para cá, consciências alteradas, mas talento imaculado. Os companheiros se foram, quase todos, menos o que entra no camarim. Tinha sido baixista da primeira formação da banda. Mas nunca muito bom. Quando surgiu o primeiro hit, a gravadora sugeriu uma substituição e ele, humilde, aceitou. Por insistência do líder, foi contratado como assistente do manager. E encontrou-se: dois anos depois era o empresário oficial daquela já grande e ainda crescente potência da música. Ao longo das mais de duas décadas, cuidara da banda como se dela fosse parte. Como de fato era, de certa forma. Ou tinha sido. Ou algo assim. Um homem de confiança.

No camarim, a conversa de sempre: “Tudo em ordem, chefe?” Desde que passara de músico a burocrata, sempre o chamara de chefe, em tom de brincadeira. “Tudo”. “E a mão? Tá doendo?” – logo antes de todo show, a mesma pergunta, desde que a artrite fora diagnosticada. “Não, hoje tá boa”. Sempre a mesma resposta. E, por trás da resposta, o que os dois sabiam e nunca tinham dito: um dia a mão não ia aguentar riff após riff; solo após solo. O dinossauro ia morrer em praça pública.

Nunca tinham dito, mas uma hora iriam dizer e foi naquele dia. “Cara, preciso me aposentar. Parar antes de fazer feio”. “Que nada, chefe. Você ainda tem anos pela frente”. Sempre assim: de um lado os músicos e seus egos frágeis, seus vícios bobos. Do outro, o executivo que só fazia administrar finanças, vaidades, inseguranças e nunca mais tinha posto a mão num instrumento. “Não sei o que seria de mim se não fosse você”. “Claro que sabe. Você ia fazer sucesso de qualquer jeito. Talento como o seu?” Condescendência e adulação. Bases estranhas para uma amizade de mais de trinta anos, desde antes de descobrirem a música. O ex-baixista ruim sentou-se ao lado do guitarrista prodígio. “Quer a bolsa de água quente?” A resposta foi só um abanar desanimado da cabeça. “Quer alguma outra coisa?” Mesma resposta. Ficaram sentados em silêncio.

Cinco minutos para o show. Levantaram-se. “Cara, preciso mesmo parar logo”. “Não se preocupa. Vai dar tudo certo.” Sorriram um para o outro e foram cada um para o seu lado: o músico para o backstage; o empresário para a cabine de som. Vai dar tudo certo, repetia internamente o guitarrista, ouvindo a voz do amigo. Vai dar tudo certo. Entrou no palco ainda escuro, pegou a Gibson e esperou as luzes.

Dez minutos de show. As mãos, já aquecidas, não doíam mais. “Vai dar tudo certo.” Tinha até incluído no setlist desta turnê um medley que passava por aquela do Bob Marley que dizia isso.

Vinte minutos de show. Trinta. As mãos já cansadas. Mas sem problemas até agora. Mesmo porque, com o passar dos anos, tinham simplificado as passagens de guitarra, diminuído as extensões de dedo mínimo. Já não era um moleque de vinte anos.

Quarenta minutos. Já não conseguia dizer para si mesmo que a mão não doía. Porque doía. Mas repetia para si mesmo “tudo vai dar certo, vai dar certo, every little thing’s gonna be alright”, numa voz que misturava a do Tuff Gong e a do amigo que, fora a música, era a única constante em tantos anos de estrada; que tinha ajudado a lidar com divórcios, pensões, advogados, fazer tentativas e mais tentativas de largar o cigarro e a bebida, a enfrentar os médicos, a encarar um show depois do outro. Sentia um pouco de vergonha de ser condescendente com ele. Mas era assim a amizade: condescendência e adulação. E funcionava. A única constante, a amizade: a confiança que tinha no amigo e que o amigo tinha nele. Sabia muito bem, no fundo, que só não tinha desistido ainda, só não tinha parado por medo de fazer feio, por causa dessa confiança inabalável que o músico sem talento tinha no virtuose. Entre uma música e outra, um gole de chá gelado e mais um analgésico. Ia dar tudo certo.

Quase uma hora de show. As apresentações da banda hoje em dia duravam pouco mais do que isso. A mão já não aguentava as maratonas de antigamente. Quase uma hora de show e, com uma hora exata, entrava aquela música. Aquela que tinha feito com que passasse de guitarrista de sucesso a deus do rock. Aquela que os moleques suavam para aprender. Aquela do solo heróico de seis minutos. Aquela que tinha virado uma forma especialmente cruel de auto-flagelação. Aquela única que os fãs faziam questão absoluta de ouvir e que não podia sair do programa. Tinham tentado uma vez. Foi a pior turnê da história da banda. Os jornais avisavam antes: não espere ouvir Aquela.

O guitarrista respirava fundo e tentava esquecer a dor. Na metade da música já sabia que dessa vez ia ser difícil. Os remédios já não bastavam. Sentia cada tendão como se fosse uma corda de mizão esticada até virar um mizinho. Mas respirava fundo e ia em frente. Já nem estava mais preocupado com a platéia, nem com fazer feio. No fundo, o que queria mesmo era não decepcionar o amigo. Ou mostrar para ele que ainda era o gênio das cordas e sempre ia ser. Mas dizia para si mesmo que era para justificar aquela confiança.

No meio do solo, um pequeno erro, mas achou que ninguém tinha percebido. Dois compassos depois, outro erro. Não ia dar. Olhou na direção da cabine de som, que não via por causa das luzes. Mas olhou assim mesmo, querendo que o amigo visse em seus olhos o pedido de desculpas por ter traído sua confiança. A mão já não aguentava mais. Errou de novo. Feio

E viu que ninguém percebeu. Tinha perdido quatro notas seguidas, mas elas vieram no retorno. Parou de tocar. E a guitarra continuava. Aos poucos o público parou de bater palmas no ritmo da música. O guitarrista base parou também e, logo em seguida, o baixo. A bateria e o teclado demoraram um pouco mais. Mas a guitarra solo continuava. Daí vieram as vaias.

Na cabine de som, o ex-baixista gargalhava e brincava com a caixa do CD de playback que há anos deixava preparado para esse dia.

20 de ago. de 2009

Reverso

Estava meio bravo porque tinham esbarrado nele enquanto dormia. Levantou e começou a andar por ali, cambaleante, sem lugar certo para ir, ainda com sono. Resolveu voltar e dormir mais, mas não encontrou o papelão e o cobertor e ficou mais bravo ainda. Alguém tinha levado embora. Ou então não lembrava mais onde tinha deixado.

Não lembrava mais de muita coisa. Dali a minutos não lembraria mais por que estava bravo. Mais alguns minutos e nem se lembraria de que estava bravo. Alguns anos de crack, cachaça, esmalte e o que mais encontrasse para se distrair tinham seu preço e a cotação era em neurônios, sinapses e cardiomiopatia.

Talvez estivesse com fome, mas, se estava, não tinha percebido ainda. Por enquanto ainda estava meio bravo, embora não se lembrasse por quê. Alguém tinha esbarrado nele, ou coisa parecida. Estava com sono. Pensou em ir dormir. Mas lembrou que tinha se esquecido de onde estava sua cama e desistiu.

Não fez diferença: viu algo brilhando no chão e lembrou que o tio da padaria trocava latinhas vazias por comida. Ou cachaça. Ou, de madrugada, quando ninguém estava olhando, por crack (mas para faturar uma pedra precisava muita latinha; precisava um saco grande cheio).

Pegou a latinha e viu outra logo ali. E outra. E outra. Muita latinha hoje. Muita gente, também. Muita. Gente se espremendo. Para ele não fazia diferença porque aquela gente limpinha de vários cheiros estranhos abria espaço para ele passar. Ele não sabia, mas era porque achavam que ele era sujo e tinha um cheiro estranho. E tinham um pouco de pena, mas mais medo. Então abriam espaço e ele pegava uma latinha, amassava com o pé e enfiava em algum bolso da calça cargo que um dia alguém pagara muito caro para ter, mas hoje vestia com muita sobra um garoto magro.

“Garoto”, digo, por causa do tamanho. Não sei que idade tinha. Essa história de narrador onisciente é balela. Mas o tamanho era de garoto. Além disso, entre outras coisas, quem é como ele raramente chega a deixar de ser garoto. Fica sem neurônios e sinapses pra pagar a conta e pronto, babaus.

Mas naquele dia, com toda aquela gente amontoada tomando cerveja e abrindo espaço para ele catar latinha, ia comer. Com um pouco de sorte, ia até arranjar uma cachaça. Ou uma pedrinha. Quem sabe?

A sorte foi até demais. Aquele povo não ia embora e não parava de tomar cerveja. Comeu, descolou uma pedra, apagou, levantou, catou mais latinha e descolou duas pedras. A sorte foi demais porque era pedra demais para alguém que não chegava a 50 quilos e comia mal e às vezes e pouco.

Na Virada Cultural do ano que vem ele não vai estar lá e ninguém vai perceber a diferença.

6 de ago. de 2009

Sinonímia

A imagem, o som
Da palavra à palavra,
a palavra,
Dizem Amen, Om,
Eheieh.
Digo Evoé.
Abrahadabra.

29 de jul. de 2009

Errata, ou "Saindo do Eremitério, parte II"

Tá. Lembra a Parte I dessa bagaça? Lembra mesmo? Você leu? Ah, então foi você... Bom, deixa pra lá. É o seguinte: esquece. Foi mal, mas esquece. Principalmente a segunda parte do último parágrafo.

Quer saber? Encheu o saco. Encheu o saco ser o cara que respeita o relacionamento dos outros e faz papel de palhaço. Que respeita o relacionamento dos outros, mas quando leva um belo par de chifres continua tratando as pessoas envolvidas com toda a civilidade do mundo. Enfim, que só se fode.

Encheu o saco ser o cara que coloca os interesses das pessoas à frente dos próprios, que para tudo pra dar uma mão na hora que alguém precisa e acaba ficando com a vida atrasada. Que oferece seus contatos pra quebrar galho de meio mundo. Que se vira do avesso pra ajudar quem mal conhece, mas que poucas vezes ouviu de alguém: "e com você, cara, tá tudo em ordem?" Enfim, que só se fode.

Encheu o saco ser aquele cara que serve pra levar pra cima e pra baixo, ficar do lado na balada, servindo de guarda-costas-barra-ombro-amigo, com a vantagem de ainda levantar a bola da acompanhante da noite perante o público em geral, com a barriga de tanquinho, o braço e ombro de vinte anos de arco-e-flecha e a capacidade camaleônica de passar em segundos de aristocrata pra rocker pra inteleco pra seja lá o que for, dependendo do ambiente e da ocasião. E que depois vai pra casa sozinho. Enfim, que só se fode.

Encheu o saco e pronto. Encheu o saco ser bonzinho. Encheu o saco deixar de lado a modelete desmiolada que tá a fim de dar pra ir pra balada com alguém de muito conteúdo e pouca vontade. Encheu, mas encheu muito, o saco deixar passar oportunidade de sexo fácil porque ando meio envolvido com alguém que não sabe o que quer da vida, seja lá quem for. Pois quer saber? Vou pegar a porra do duplex bacana na rua bacana do bairro bacana, a porra dos contatos, a porra dos 9,5% de gordura no corpo, a porra do abdome que muito modelo de moda praia venderia a alma para ter, a porra do QI de cento-e-sessenta-e-lá-vai-pedrada e leiloar pra ver quem dá mais.

Enfim, que se foda.

19 de jul. de 2009

O outro

Duvide, minha amiga, de quem diga que ando desgovernado, que vago pela madrugada paulistana com garotas de fama aquém de ilibada. Haverá um engano decerto, que de pronto nego. Quem apronta dessas, garanto, não sou eu, quase santo. É o meu alter-ego.

Onde já se viu tão vil injúria? Alguém dessa estatura, da linhagem mais pura, habituado a jantares de doze talheres, frequentar esses bares com essas mulheres? Pare. Ouça. Ainda paira, moça, o último eco do silvo da flauta. Não são minhas as faltas. E, rápido, conto: "é o sátiro". E pronto.

Acha possível que alguém como eu, um lorde, assim se porte? Perdido, sem norte? Em vez de vernissages, concertos, museus e quartetos de cordas, passar a noite nas rodas dos guetos, nos seus becos? Bobagem. Olha para trás, para baixo; vê as pegadas? Eu calço sapatos de cromo e, às vezes, coturnos. E esses rastros são dos cascos desse animal noturno, o fauno. Juro.

Isso não existe. Percebe? Um membro da elite não se envolve com a plebe. Nem se permite ser visto em qualquer inferninho de mau gosto.Isso é de mim, afinal, o oposto. Preste atenção, é importante. Isso só acontece quando me distraio por um instante e Pã aproveita e assume o volante.

7 de jul. de 2009

Toma, Morpheus!

Na hora de escolher
entre a pílula azul e a vermelha
eu, que só faço o que me dá na telha,
engoli de uma vez as duas
(lá vai o maluco do Allan
fazer mais uma das suas).

E foi assim que fiquei assim:
cético, cínico, realista; mas
ainda perfeitamente capaz
de sonhar mais, e mais longe,
do quê ou onde alcança a vista.

2 de jul. de 2009

Do Que Não Escrevo

Tem gente que escreve coisas bonitas, fáceis e gostosas de ler. Que sabe pegar algum negócio banal e transformar num textinho interessante e pra cima. Falar das coisas boas que acontecem. Deixar a gente com uma sensação de felicidade quando chega o último ponto final. Eu até que gostaria de saber fazer isso, mas não sei. Já tentei. Não sai nada que preste.

Tem gente que consegue falar de amores felizes e relacionamentos que deram certo. Quando me aventuro a falar de relacionamentos, só sai desastre. Tem gente que fala de amigos, de parentes, que canta e decanta o lado bom da humanidade. Eu, francamente, desconfio que a humanidade em geral, se é que tem um lado bom, faz o que pode pra se livrar dele.

Tem gente que fala do que há de belo na natureza. Eu, quando falo de natureza, é como metáfora ou analogia para as podreiras da vida. Tem gente que fala da bondade de deus. Eu sei que deus não existe e, se existisse, seria um tremendo sádico.

Não me entendam mal. Quem não me conhece e lê isso tudo que eu escrevi aí em cima deve estar achando que eu sou um maníaco depressivo. Um misantropo. Um grande chato, no mínimo. Para esclarecer: de depressivo não tenho nada. Passo a maior parte do tempo de bom humor. E quando me irrito — o que é muito, muito raro — não costuma durar mais do que cinco minutos. Misantropo? Não. Vá lá que seja, eu não curto muito a maioria das pessoas. Mas isso não é ser misantropo, é ser seletivo. Chato? Bom, aí fica a critério de vocês. E, para o caso de alguém estar se perguntando: Ateu? You betcha.

Enfim, aquilo que escrevo não é necessariamente aquilo que sou. Eu escrevo o que me incomoda. Eu escrevo o que detesto. Para mim escrever é emese, é sangria, é tosse. É tirar do estômago algo podre que engoli. Tirar do sangue um começo de sepsis. Botar pra fora a espinha de peixe na garganta. Eu escrevo o que, se não escrevesse, me envenenaria aos poucos. E aí sim, se não escrevesse, quem sabe eu não viraria um chato misantropo e mal-humorado?

Escrevo o que me faz mal. Escrevo o mal. Escrevo morte, medo, descaso, doença, pobreza, burrice, crueldade, traição. Escrevo aquilo que tiro de dentro de mim quando ponho no papel ou no HD.

Não escrever sobre você é elogio.

24 de jun. de 2009

Poema de amor?

Se eu quero um amor?
Quero, sim, por quê não?
Mas não me venha com esses
de bichinhos de pelúcia,
vinhos caros e bombons.
Quero amor caco de vidro.
De ressaca de bourbon.

Não um amorzinho belo,
amor flores e arco-íris,
serenatas, violinos.
Se vier amor, que seja
concertina, amor tormenta,
tatuagens, overdrive.

Muito menos um amor
com flechinha de cupido.
Seja um amor violento,
um amor bala perdida,
um amor ponto cinquenta,
um amor roleta russa.

E nem me venha com essa
de amor de coração.
Um amor só me interessa
se for desses que se sente
como um soco no estômago
e, de resto, tão sutil
quanto um bom chute no saco.

22 de jun. de 2009

De Árvores e Avatares

Por onde andará Omar Khayyám? Será que chora pelas mulheres de véus negros prensadas contra as grades pela tropa de choque? Será que tenta estender as mãos sobre elas enquanto suportam, bravas, os cassetetes? Será que é sua voz que ouvimos vinda do homem que, do outro lado das grades, grita com a soldadesca? Será que é de Khayyám a mão que tenta, desesperada, trazer Neda de volta? Será Khayyám quem urra quando ela fecha os olhos?

Será que Khayyám se sente tão impotente quanto a gente, que vê tudo tão de longe que daria na mesma estar morto há séculos? Será que tem internet no Paraíso? E, se tem, e se é que Khayyám lá está, será que pinta seu avatar de verde numa tentativa frustrada de se sentir menos distante?

Neda sangrou pela boca, pelo peito, pelo nariz, em praça pública, na frente do mundo todo. Será que a gente se pintar de verde na Internet está de qualquer maneira à altura de Neda pintada de vermelho por um covarde?

Jefferson bem que avisou: a árvore da liberdade exige rega ocasional com sangue. Dos patriotas e dos tiranos. Fez bem o velho Thomas ao enunciar nessa ordem os sacrifícios. Porque parece que sangram os patriotas mais do que os tiranos.

19 de jun. de 2009

Saindo do Eremitério, Parte I

Lá para meados de outubro do ano passado resolvi que precisava dar um tempo com relacionamentos de todo o tipo. Quem me conhece sabe por quê. Quem não conhece, sorry folks, mas não estou a fim de falar nisso. Sabe aquele dito popular do urubu com azar? Então: eu era o mais de cima de todos, aquele que a gente vê como um pontinho contra o céu (e só se estiver em dia com o oftalmo).

Enfim, lá fui eu pro meu sabático, retiro, chame como quiser. E decidido a lá ficar até ter conseguido engolir, digerir e eliminar um monte de coisa. Queria ter certeza de que não ia contaminar relacionamentos futuros com o lixo tóxico dos anteriores. E, fora uma escorregada no fim de novembro, até que deu para segurar.

Me dei alta lá pro começo de março, com duas decisões tomadas: achar alguém que valesse a pena e, enquanto não achasse, entrar numas de relacionamento casual. É que lá pelos 20, 21 anos eu resolvi que detestava relacionamento casual. One night stand me fazia mais mal do que bem. Mas pensei com meus botões que agora, mais maduro e tal, a coisa ia ser tranquila. E fui atrás das duas coisas. Recapitulando: achar uma companheira bacana e, enquanto não achasse, fazer um monte de meaningless sex.

Quando o povo que me conhece soube que eu estava de volta ao mercado, começou aquela coisa: todo o mundo tentando me vender amiga, prima, filha, ex-mulher (imagino até neguinho pensando, “Putz, quebrar uma pro cara e ainda me livrar da pensão! Quer coisa melhor que isso?”). Começou a coisa com um almoço com uma garota que conhecia pela fama, mas não pessoalmente, e que admiro pacas faz tempo. Na boa, fui para lá com toda a intenção de me interessar por ela. Só que não rolou. Não me entendam mal, sou fãzaço da moça e adorei ter conhecido. Mas — apesar das mãos delicadas e do pescoço esguio, combinação perigosíssima — química? Zero. E tenho certeza de que é recíproco.

Beleza, tudo bem, vamos em frente. Logo depois, outra senhorita, primeiro relacionamento casual. Na hora, bacana. No dia seguinte, nem tanto. Nem vem ao caso comentar. Pensei em encerrar o projeto ali mesmo. Mas eu sou cabeça-dura e resolvi insistir mais um pouco. Mesmo porque, convenhamos, eu estava a seco fazia uns meses.

Mais alguns dates arranjados por amigos, parentes e conhecidos, sem que surgisse a menor faísca de interesse por alguém. Numa festinha em casa de amiga, me aparece uma guria bonita, mas meio estranha, e se mostra altamente disponível. Trocamos telefones e fomos cada um pro seu lado. Umas duas semanas depois, ligo para ela, chamo para ir a um show de amigos e ela topa. Fiquei chupando o dedo a noite inteira. No dia seguinte, telefonou dizendo que teve que buscar uma amiga na rodoviária e sei lá mais o quê, e que topava fazer algo aquela noite. Na dúvida, combinei de encontrar num barzinho de blues onde eu iria estar de qualquer jeito. Outro cano. A essas alturas, melhor passar para a próxima da fila.

Mas não é que a gaja me liga na terça-feira seguinte, lá pelas nove da noite, perguntando se eu não queria ir para a casa dela com uma garrafa de vinho? E não é que eu fui? Mas a moçoila abriu a porta trajada de calça de moleton e camisetão. Frente à cena, pensei aqui comigo, “certo, entendi mal: ela só devia estar a fim de tomar vinho e com preguiça de ir comprar”. Papo vai, papo vem, ela levanta e diz que vai vestir uma roupa mais confortável. Bom, duas coisas. Primeira: mais confortável do que calça de moleton e camisetão? E segunda: nunca achei que alguém dissesse essa frase na vida real.

Enfim, ela foi, levou um tempinho, voltou com uma micro-saia fúcsia na altura do útero e deitou no sofá com as pernas em cima das minhas. Pois quer saber? Broxei na hora. E foi aí que cancelei de vez o projeto bootycall. Não adianta eu tentar ser alguma coisa que eu não sou. Deixando claro — tanto para mim mesmo (vai que eu esqueço) quanto para quem estiver entediado o bastante para ter lido até aqui —, fica aqui registrado: não vou nem me dar ao trabalho de começar algum relacionamento que não tenha algum potencial para ser o último relacionamento que vou começar. E foda-se.

11 de jun. de 2009

Predadores

Uma coisa que nunca vou entender é por quê diabos as pessoas são incapazes de admitir que são, sim animais. Animais como quaisquer outros. Tá bom, que seja, não como quaisquer outros porque vivem em sociedade, em grupos muito maiores do que recomendariam seus instintos e, por isso e para isso, têm que aceitar certas regras. Já diziam os xarás do tigre do Calvin e daquele cara do Lost.

Cada um de vocês é um primata. Só primata, não: primata e predador. Nós somos uns monstros de uns predadores territoriais. Altamente bem-sucedidos, diga-se. Sabem por que, entre outros motivos, a evolução nos deu um cérebro tão grande? Porque podia. E por que podia? Porque a dieta dos nossos antepassados incluía muito mais proteína do que a dos outros primatas superiores. Por isso dava para desviar uma quantidade maior de matéria-prima para a massa cinzenta.

Esses olhos que você tem na frente da cara? Traço típico de mamífero predador: de leão, de lobo, de carcaju, de ariranha. Olhos com eixos paralelos dão noção de distância, para saber onde, exatamente, está o bichinho que você vai comer daqui a pouco. Olhos colocados ao lado da cabeça — como os do carneirinho, da vaquinha, da cabrinha, do coelhinho — dão uma visão de campo muito maior, para saber de onde vem o cara que quer te comer. Quem é predador pode se dar ao luxo de não ter visão periférica tão ampla: o mais provável é que ninguém vá se meter com ele, ou ela.

Por que é mais fácil correr rápido do que correr longe? Por que alguém que esteja numa forma física apenas razoável consegue correr 100 metros rasos num tempo, afinal de contas, não tão distante assim do recorde mundial, mas é absolutamente incapaz de correr uma maratona? Porque predador não tem que correr longe. Só tem que correr mais do que a presa. Se puder correr longe e rápido, tanto melhor, parabéns a quem faz isso e tudo o mais. Mas não é a nossa aptidão natural.

Admitam, queridos. Pelos critérios que nós mesmos estabelecemos culturalmente, o homem é mau (agora vocês entenderam porque não falei do Rousseau no primeiro parágrafo, espero). Só que os critérios são cretinos, sinto informar. E causam muito mais problemas do que resolvem.

Falando sério, acho mesmo que a maioria dos nossos grandes problemas sociais vem do fato de que a maioria das pessoas pensa que é algo especial, criado à imagem e semelhança seja lá de quem ou do quê for, ou para cumprir seus desígnios. Nesse sentido, até muita gente que se dia atéia se comporta como se não fosse. Acordem, crianças: cada um de vocês é, sim, um predador. É, no fundo, muito pouca coisa além de um bicho que come outros bichos (nem me deixem começar a falar de vegetarianismo). E a sua vida vai ficar bem mais fácil na hora em que vocês admitirem.

Quem sabe que é bicho aprende a lidar com isso. E não estoura na hora errada. Nem pede arrêgo se não precisar. Sabe a reação que você tem quando leva um susto? Ou quando fica muito, muito puto? Isso se chama fight-or-flight response (claro que eu podia escrever “reação de lutar ou fugir” mas fight-or-flight soa muito melhor e, além disso,estou montando um case para outro texto). Não vou entrar em detalhes de sistema nervoso simpático, hipotálamo ou acetilcolinas. Mas o fato é que, sob condições de estresse, o corpo se prepara para lutar ou fugir. Infelizmente, hoje em dia, a maioria das pessoas está tão cagona (diga-se de passagem, a expressão vem de um dos efeitos da tal reação) que vai direto pro lado do flight, simplesmente porque é incapaz de lidar com a sensação. Quem sabe o que está sentindo, não surta com isso. Usa. Se for fight, fight. Se não der pra encarar, paciência, flight. Só que o povo está tão desacostumado que reage a qualquer coisinha e pronto, já viu, ou arreda pé sem motivo, ou solta os cachorros em cima de alguém que não tem nada a ver com nada.

Aceitem, meus caros: vocês são, sim, uns monstrinhos. Encarem a realidade e facilitem as próprias vidas.

4 de jun. de 2009

Historinha de Assombração

Às vezes vejo por aí um fantasma que nem fantasma parece. Só de olhar pra cara do fulano a gente vê que é feliz, confiante na vida, ou, pelo menos, no sucedâneo de vida de que gozam os fantasmas. Que olha para a frente e vê um futuro definido e tranquilo. Que sua vida está resolvida e bem embalada. Que nem desconfia que esse embalo vai servir só para aumentar o tamanho do tombo. Fica andando por aí, como se vivo fosse, pelo apartamento claro e amplo que habita. De vez em quando fico olhando enquanto ele faz jantar para dois, blissfully unaware de que a vida não é como ele pensa.

Quando falam em assombração, a gente pensa em lugares antigos, escuros, lúgubres. Fantasmagóricos, enfim. Castelos ingleses. Abadias normandas. Velhas senzalas abandonadas. Não é bem assim: o mesmo apartamento modernoso que aquele fantasma assombra, que tem por fachada uma enorme janela e tanta iluminação natural que chega a incomodar, é morada, também, de outro espectro, esse de aspecto mais típico. Aquelas coisas que a gente espera de fantasma: pálido, olheiras, 60 quilos esquálidos distribuídos por seu metro-e-oitenta. Esse não assobia. Nem faz jantar. Quando muito, olha com pena, ou raiva, ou pena e raiva para o outro fantasma.

Eu olho para os dois e xingo as páginas amarelas porque não encontro anúncio de exorcista que ajude a gente a se livrar de fantasma de si mesmo.

27 de mai. de 2009

O Anti-Clown

É até compreensível que ele se tivesse tornado quem foi. Terceiro e mais novo rebento de pai e mãe que vinham, ambos, de longas e honradas linhagens de palhaços de circo, sentiu-se sempre por eles preterido em favor dos irmãos mais velhos, Hilário e Allegra.

Tristão foi filho temporão, nascido quando seus pais já não pensavam em acrescentar à pequena e perfeitamente equilibrada família de dois adultos e duas crianças, dois homens e duas mulheres. A gravidez inesperada impedira a apresentação de sua mãe no Festival de Milão, justamente no ano em que era considerada franca favorita. Talvez por isso tenha sido nosso protagonista registrado com esse nome, embora o pai sempre jurasse que não.

Mas, tenha ou não sido intencional, é pouco provável que o infeliz apelido possa explicar o caminho que escolheu trilhar Tristão. O fato é que sempre apresentara uma tendência para o dramático e o trágico. Dos três irmãos, fora o único a chorar após o parto sem necessidade de intervenção do obstetra. Manifestara, desde a mais tenra idade, violenta alergia ao pó-de-arroz e à tinta facial. Quando, com a família à paisana numa lanchonete do interior, uma garçonete bem intencionada lhe perguntara o que queria ser quando crescesse, respondeu: “Palhaço” e em seguida teve um acesso nervoso e começou a rir e chorar ao mesmo tempo.

Era um super-vilão, como esses de histórias em quadrinhos. Está bem, que seja: não era exatamente um super-vilão. Não fazia o mundo tremer de medo com sua gargalhada maligna. Nem tinha super-heróis contra quem se bater. Sequer super-poderes tinha. Enfim, sejamos objetivos: Tristão gostava de se imaginar um super-vilão. Fora do horário de trabalho, despia-se da fantasia e vagava incógnito pela cidade em que estivesse, vestido como uma pessoa qualquer, praticando pequenas maldades.

Misturava pimenta no açúcar do algodão-doce e anti-ácido no sal das pipocas, amassava botões de flores antes que pudessem desabrochar e furava os pneus do carrinho de sorvete. Só nessas horas é que surgia entre seus lábios um sorriso verdadeiro.

26 de mai. de 2009

Lamento de um foodie fodido

I

Ah, quem dera estar em terras de França e, num porão qualquer de Isigny sur Mer, abrir um verdadeiro camembert, em vez dessa porcaria pasteurizada a que a vigilância sanitária nos obriga. E que se danem as lombrigas.

II

Caviar, quem sabe. Sevruga com blinis. Ou, já que estamos no plano da imaginação, um beluga, até? Mas não o de Taubaté. Esse não.

III

Imagine:
Charcutarias finas de Viena. Uma baguette saindo do forno. Uma taça de rustico frutado.

Só mesmo com muito esforço pra esquecer o retrogosto.
(Fanta uva e pão com ovo)

IV
Um dia alguém falou do aspecto fálico do almofariz, da natureza quase onanista de seu manipular. Perdi para sempre o gosto pelo pesto. E cortei relações com aquela vaca freudiana.

V
Hoje, por preguiça de cozinhar, jantei uma sopa Campbell’s de ervilha. Agora, vejam só que maravilha, estou me sentindo super pop-art.

VI
Um foodie qualquer worth his salt
aceitaria de bom grado
um espresso Kopi Luwac
e macarrons da Ladurée.
Mas às vezes basta café
(de coador) e uma caixa
de caramelos de Avaré.

VII
Que Deus me livre de Evian e S. Pellegrino, essas marcas de água pequeno-burguesas. Eu quero é uma taça de Fiuggi ou de Volcanic, uma Sole, ou Siana, ou Lauquen, ou Le Bleu, pra beber euros por gole e sentir na língua algo diferente do gosto ácido-amargo de água de torneira guardada na moringa.

21 de mai. de 2009

Fita de Möbius

Quando se conheceram, ficaram os dois meio abestalhados. Num sábado à noite, num bar cheio. À meia noite estourou o transformador do quarteirão e sentaram-se juntos e conversaram tanto e tão bem que nem perceberam quando a luz voltou. Era dia claro quando saíram de lá, sob insistentes pedidos do gerente.

Tiveram um relacionamento estranho, meio platônico. Email, messenger. Encontravam-se às vezes no fim da tarde para tomar vinho em algum bar onde ninguém os conhecesse — a situação não era, digamos, propícia. Depois de algum tempo ela pôs um ponto final naquela história.

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Voltaram a se encontrar uns seis meses depois, agora um pouco menos platônicos. Mas, de novo, havia dificuldades, ainda que outras. E foi ele quem, dessa vez, achou motivo para por um ponto final.

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Foram sete anos entre o segundo ponto final e o segundo reencontro. Que nada teve de platônico. E foram dois meses entre o segundo reencontro e o terceiro ponto final.

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Os dois ao mesmo tempo querem e temem que os pontos finais tenham virado reticências.

16 de mai. de 2009

Vingança

Ingrato. É isso que ele é. Só me fode, sempre que tem uma chance. Mesmo depois daquele dia em que convenci a namoradinha dele a não se matar e pensei, “bom, agora ele me dá uma folga”, o cara continua tirando comigo.

Mas agora chega. Vai ver só uma coisa da próxima vez que aparecer com aquele arquinho ridículo. Quero ver como se vira contra um composto Golden Eagle de 80 libras, flecha de carbono e ponta de caça turkeyspur de cromo-molibdênio-vanádio. Tenho treinado. Com scope e gatilho faço agrupamentos de uma polegada a cem metros.

Da próxima vez que o puto aparecer, prego ele na parede pelas asinhas.

7 de mai. de 2009

Cantiguinha de auto-escárnio

O predestinado de um lado
e, do outro, ela e a vela.

Entre cristais e aprendizes
(entre Geraldos e Lizes),
como esperar do coitado
que honre suas raízes?

Ovelha negra da família,
vergonha da Vidigalzada:
não sabe fazer poesia.
Quando tenta, só sai piada.

28 de abr. de 2009

Vício

Saio do escritório tarde. Prazo para o dia seguinte, maior correria. Exceção de incompetência. Coisa chata. Saio lá pelas três da manhã. A portaria da Líbero Badaró fecha às onze da noite e depois disso, só pelo Vale do Anhangabaú. Que é terra de ninguém depois que escurece. Os quinhentos metros até a alça da 23 e o ponto de táxi são sempre uma aventura quando saio tarde assim.

Cansado. Distraído. Tentando lembrar se esqueci de alguma coisa na petição. Acendo um cigarro. Gitanes sem filtro. Coisa reservada para dias de estresse especial.

“Dá um cigarro, tio?”

Paro. Olho. Enfio a mão no bolso do paletó e peço o maço; tiro um e dou para o cara. Penso com meus botões que ele não faz a menor idéia de quanto custa o cigarro que ele vai fumar. Vai acender e tragar como se fosse um roliúdi qualquer. Não que tenha qualquer importância.

“Tem fogo?”

Guardo o maço de cigarros num bolso e, com a outra mão, pego o isqueiro.

“Dá a carteira!”

Cansado. Distraído.

“O quê?”

“Dá a carteira, porra! Relógio, celular! Vai, filhadaputa!”

Com o canto do olho percebo algo brilhante na mão do figura. Faca. Olho meio fascinado para ela, que parece ocupar todo o meu campo de visão. Fodeu.

Ouço um grunhido molhado e desvio os olhos da lâmina por um instante. Meu interlocutor me encara, surpreso e exoftálmico. Surpreso eu, também, ao ver minha mão livre agarrada à sua garganta. Ouço o som da faca caindo no mosaico português, um som distante. Minha atenção se concentra, toda, na visão — daquela boca contorcida — e no tato: na pele quente, escorregadia, sebosa; na carne que cede, relutante, à pressão dos dedos; na sensação, afinal, das pontas do polegar e do indicador quase se tocando atrás da traquéia, separadas apenas por uma dupla camada de derme.

Minha mão tem vontade própria e continua a se fechar, comprimindo as vias aéreas do coitado e forçando a língua para fora. Em câmera lenta, vejo minha mão trazer o rosto em pânico para perto do meu. Aos poucos meus sentidos abrem espaço para o olfato e percebo seu hálito podre. Meus olhos dentro dos seus, que, estranhamente, parecem pedir ajuda. Ajuda? A essas alturas? Não tem mais jeito, meu caro: o hióide e a cricóide já foram pro saco. Eu senti quando eles partiram. Não tem mais jeito.

Praticamente me derramo naqueles olhos de sampaku. Entre o horror e o fascínio, vejo as pupilas se dilatarem até comerem quase toda a íris. Minha mão está praticamente fechada. Nossos narizes quase se tocam. Quando minha mão finalmente começa a se soltar, um último suspiro escapa daquela boca morta: agudo, discreto, rouco, como uma mulher que goza baixinho. Minha perdição.

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Faz anos que às vezes me pego fazendo hora no escritório, inventando motivo para ficar até tarde e ter que sair de madrugada pelo Vale. Às vezes tentam me assaltar.

27 de abr. de 2009

Bem-te-vi

"Vou chegar tarde", ela disse. "Tem um happy hour do trabalho."

E chegou mesmo. Às seis da manhã. Ele passou a noite junto da janela, olhando para fora, esperando. Telefone na mão. Ligou tantas vezes que não fazia idéia de quantas. Caixa postal. Lá pelas quatro e meia, começou a cantar um bem-te-vi que devia estar no fuso horário errado. Cantou por meia hora e ficou quieto.

Depois desse dia ela passou a chegar tarde com frequência. Quase sempre, aliás. E ele, trouxa, ficava junto da janela, olhando para fora e esperando. Já não se dava ao trabalho de telefonar. Ela não iria atender. E às quatro e meia de cada madrugada cantava o tal bem-te-vi, que aos poucos virou seu parceiro de vigília. Mania cretina de antropomorfizar as coisas. Tentava imaginar se o bicho queria dizer algo como "cara, vai dormir, desencana", ou "espera mais um pouco, ela já chega". Fosse o que fosse, o bem-te-vi era a única companhia que tinha naquelas horas de sofrimento auto-imposto.

O bem-te-vi virou seu único amigo.

Uma noite, lá pelas quatro e pouco, ele se assustou com a campainha do telefone. Era ela. Não iria voltar. A não ser para pegar suas coisas. Ele desligou o telefone e, logo em seguida, o bem-te-vi começou a cantar. Teve um acesso súbito de ódio. Como assim, cantar? Como assim? "Não percebeu, passarinho filho da puta, que agora acabou?" Se tivesse uma doze por perto, teria transformado o bicho em paçoca. Mas não tinha e o bem-te-vi continuou a cantar como se tudo aquilo não tivesse a menor importância.

(O bem-te-vi sabia das coisas.)

24 de abr. de 2009

Conversinha

"Eu não quero ir. Quero ficar aqui em casa."
É você quem sabe.
"Então tá."
Mas você sabe o que vai acontecer. Não sabe?
"Não vai acontecer nada. Dessa vez, não."
Não diga que eu não avisei.
"Para!"
Então vamos.
"Não, por favor. Eu não quero. Não gosto de ir lá fora."
Mas eu quero. Gosto. Preciso.
"Não."
Tá.
"Para, por favor. Para. Para..."
Você sabe que só vou parar quando sairmos.
"Não!"
Oquêi...
"Para, eu não aguento mais..."
...
"Para... por favor... eu não consigo mais fazer isso."
...
"Tá bom. Vamos."
Você não está esquecendo nada?
"Ai... não... vamos só dar uma volta desta vez? Só desta vez?"
Não é assim que as coisas funcionam. Você sabe. Só tem um jeito de você se ver livre de mim.
"Mas você sempre volta."
Tá. Só tem um jeito de você se ver livre de mim por um tempo. Pega a faca.
"Não, não quero!"
PEGA A FACA! PEGAFACA! PEGAPEGAPEGAPEGAFACA!
"Para, pelo amor de deus... eu pego... mas para de gritar, senão as pessoas vão ouvir tudo."
Você sabe muito bem que não vão.
"Mas se você não parar, eu vou gritar também. E as pessoas vão ouvir."
Então pega a faca e fica quietinha.
"Tá. Tô indo."

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O QUE VOCÊ TÁ FAZENDO? PARA! PARA!
"NÃO! CHEGA! ACABOU! NÃO VOU MAIS FAZER O QUE VOCÊ MANDA!"
PARA DE GRITAR AS PESSOAS VÃO OUVIR...
"NÃO! NÃO VOU MAIS FAZER O QUE VOCÊ MANDA! E VOU GRITAR O QUANTO BEM ENTENDER!"
Se acalma, por favor... vamos conversar...
"NÃO, CHEGA DE CONVERSAR, VOCÊ SEMPRE ME ENGANA! CHEGA!"
Não faz isso... não faz isso não... faz..."
"Isso."

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O vizinho do lado chamou o zelador, que chamou o proprietário, que tinha a chave da kitchenette. Entraram todos e deram de cara com dona Ziquinha caída no centro daquilo que parecia um mar de seu próprio sangue. Chamaram a polícia. Um investigador vomitou ao abrir o freezer em busca de gelo e encontrar dúzias de orelhas, cada uma em seu envelope Zip-Loc.

7 de abr. de 2009

Paquera

Ela entra no bar, vai até uma mesa onde alguém comemora seu aniversário, cumprimenta as pessoas, olha em volta. Bonita. Muito bonita. Olhos verdes, cabelo preto. Sempre uma combinação perigosa. Vem em minha direção.

"Oi, esta cadeira tá ocupada?"

"Não. Pode pegar."

Mas não, não faltava um lugar na mesa dela. Puxa a cadeira e senta. Vira para o barman.

"Ô! Me dá uma Stella."

Assim, no imperativo. Sem nem uma interrogação no fim pra parecer mais simpática. O cara do bar dá um sorriso cínico, pega a cerveja, abre, serve. Marca a comanda.

A essas alturas a banda começa a esquentar. Ótimo. É para isso que venho aqui. Sei o setlist deles de cor. Tocam neste bar uma vez por mês. A próxima música começa como uma versão groovada de Águas de Março, passeia por Smoke on the Water, volta pras Águas de Março e termina com o teclado brincando em torno do riff de Aqualung. Puta banda.

"Posso pegar um cigarro seu?"

Geralmente funciona, mas nem sempre. Normalmente, num bar de jazz desses mais caros, cabeludo de roupa preta e cara de poucos amigos não é abordado e consegue ouvir música em paz. Problema: até em bar de jazz às vezes aparece mulher que gosta de cabeludo de roupa preta. Especialmente se tiver cara de poucos amigos.

"Pode, claro."

Desde que você fique quieta e me deixe ouvir a banda sossegado. Só que, claro, cometo um erro básico. Acendo o cigarro para ela. Bonita. Muito bonita. Olhos verdes, cabelo preto. Já disse.

"Valeu."

"Foi nada."

Agora fica quieta, sério. Já perdi metade da música.

"Você tá sozinho?"

"Tô. Sempre venho aqui quando tô a fim de ficar sozinho e ouvir música."

Nada sutil, mas costuma funcionar.

"Sua namorada não liga?"

Putz, garota... será que você não se toca?

"Tô solteiro."

"Ah, duvido!"

"É um direito seu."

Quem sabe agora eu consigo voltar a prestar atenção na banda.

"É sério? Você tá solteiro de verdade?"

"Faz diferença?"

Pronto. Agora ela me deixa.

"Não."

A estas alturas já saí do clima da banda. Olhos verdes, etc. Quem sabe rende alguma coisa. No mínimo treino um pouco de esgrima verbal.

"Como assim, 'não'? Você acha que tudo bem se eu tiver namorada, for casado?"

"Agora não tem ninguém com você. E eu tô aqui."

Olha pro lado de lá do balcão:

“Dá outra cerveja.”

De novo no imperativo. É. Vai ser esgrima verbal. Não dá pra simpatizar com quem fala assim com o barman.

“Sei. E se fosse o seu namorado num bar, sem fazer nada de errado, e alguém começasse a dar em cima dele? Você ia gostar?”

“Eu não tenho namorado. E não tô dando em cima de você.”

“Tá, sim.”

“Você é muito convencido.”

“Sou, mas isso não tem nada a ver com a história. O fato é que você tá dando em cima de mim, sim. Se não, estava sentada na mesa do aniversário da sua amiga.”

“Eu não gosto deles.”

“De quem você gosta?”

“Eu gosto de você.”

“Não, não gosta. Você nem me conhece. E eu não gosto de você.”

“Como você pode não gostar de alguém que não conhece?”

“Boa pergunta. Mas não gosto.”

“Quer sair daqui e ir pra algum outro lugar?”

“Boa idéia. Tchau.”

E o pior é que já está tarde demais pra achar outro bar com show de jazz começando.

25 de mar. de 2009

Lá e cá

O boteco da esquina aluga a laje pro povo fazer festa. Em dia de futebol é um inferno. E dia sim, dia sim, é dia de festa de futebol. Gritos de “Gooooooooollllll!”, urros de “Uuuuuuuuuuu!”, cânticos de “Curíntcha!”, arrotos e rojões parecem explodir aqui dentro do apartamento e fermentam fantasias de suicídio ou homicídio.

Saio da loja bacana de bebidas e vejo caído na calçada, como em tantas tardes, Marcos, um mendigo que ronda a região. A roupa rasgada revela costelas, um xilofone sujo. O Speyside malt espreita – mau, caro e perfeito – de dentro da sacola de celofane e me dá um pouco de ódio de mim mesmo.

Mas.

Hoje cedo, no meio da megalópole, em plena Paulicéia, um carcará me encarava da beirada da jardineira.

E.

Proclamam os túneis de celofane no corredor do supermercado: vem chegando o dia internacional do chocólatra, quando as criancinhas celebram rituais esquecidos e mantêm viva uma velha deusa.

No fim, vai dar tudo certo.

19 de mar. de 2009

De gato e rato

É no escuro, no quarto sem cantos vivos ou horizonte, que abro meus olhos. É no escuro, do lado de dentro do cubo de faces pretas, que faço o convite. É no escuro, com fumos de tabaco e assa-fétida, que ergo as cortinas do mundo. É no escuro, ao som de um violoncelo a noventa decibéis, que arranco da terra uma coluna de fogo. É do escuro, agora negro-escarlate, que me lanço em seu encalço. É no escuro que encontro, a cada noite, a sua luz baça. É no escuro que, a cada noite, atrelo seu sono aos cães.

É no escuro, perdido nos vapores, que você cai a cada noite. É no escuro, em ré menor, que um quarteto de cordas toca seu réquiem. É no escuro que você, cordeiro, bale perante os lobos. É no escuro que você, fraco, rasteja em busca de saída. É no escuro que você, fraco, implora por uma saída. É no escuro que você, fraco, jura que mataria seus pais em troca de uma saída. Quando, então, desfaço as amarras, é no escuro que você, fraco, balbucia e soluça obrigados.

É no escuro que pinto seu sono com os monstros da sua infância. É no escuro que corto, noite mal dormida por noite mal dormida, uma por uma, as cordas da sua sanidade.

(Quem mandou se meter com alguém que, um dia, matou um deus?)

5 de mar. de 2009

Satírico

Mentiu Plutarco, ou mentiu o tal Thamus.
Pode ter sido um erro inocente,
mas está vivo, e bem, e contente.
Não passou tudo de um simples engano.

Abandonou a Arcádia, é verdade,
e já nem pensa em Syrinx ou Echo.
Mas aprendeu a beber em boteco
e gosta mais de viver na cidade.

O fato é: o rapaz não morreu.
Mora em São Paulo, num loft bacana,
e já nem é mais tão grande sacana.
O Grande Pã, minha cara, sou eu.

1 de mar. de 2009

Fim

Talvez fosse mais fácil ter raiva. Convencer a mim mesmo de que você só me usou durante todo esse tempo. De que eu só era conveniente. De que, no fundo, você nunca me amou. De que você nem é capaz de amar qualquer coisa que não seja você mesma. Talvez seja verdade. Não sei. Espero que não – acho que não. Mas nunca vou saber com certeza e prefiro acreditar que, pelo menos por algum tempo, tenha sido de verdade.

Foram sete anos e não é de uma hora para outra que a gente passa por cima de algo assim. Sete anos não se apagam tão fácil. Nem que a gente queira. E eu nem sei se quero. Acho que não quero. Mesmo porque, não ia fazer diferença nenhuma: os sete anos já foram, não voltam, não tem jeito. E deve ter tido alguma coisa neles que tenha valido a pena. Difícil aceitar que tenham sido simplesmente jogados fora. Mas vai ver que foram. Sei lá.

Desculpa. Jogados fora? Não. Claro que não: teve lá suas coisas boas. Teve, sim. Pena que o fim foi tão feio, tão doído, tão brutal que o resultado líquido é negativo. Talvez com o tempo essa sensação passe. Talvez. Mas acho que não. Não me entenda mal. Eu provavelmente faria tudo de novo, mesmo sabendo que ia dar de cara no muro no fim da história. Vai entender. Quando a gente ama, faz umas idiotices que não dá para explicar. E eu te amei. Até o fim, eu te amei. Até depois do fim, eu ainda te amei por um tempinho.

Seria bom se desse para pegar o que quer que tenha sobrado da gente, repaginar, reformatar e transformar em amizade. Mas não dá. Não. Apaga. Acho que ainda somos amigos. Eu, pelo menos, não parei de me importar com você. Mas, se ainda somos amigos, agora somos amigos desses que não se falam. Que ficam sabendo pelos outros da vida um do outro. Que torcem à distância. Amigos que praticamente não se conhecem mais.

“Não se conhecem mais”. Acho que é isso. Eu acho que não conheço a pessoa que você escolheu ser. Conheço melhor do que todo o mundo aquela outra, aquela que era melhor do que todo o mundo. Mas a nova edição revista e atualizada, esta eu não conheço. E nem quero.

Boa sorte, moça. Seja feliz.

20 de fev. de 2009

Quarta de Cinzas

COMENTARISTA (1): Muito bem, caro telespectador, bem-vindo a mais uma cobertura exclusiiiiiva da maior festa do mundo, o maior show da Terra, o magnífico Carnavaletudo da Cidade Maravilhosa. Tudo pronto para o desfile? Marcos?

Repórter (1): Do lado de cá, tudo pronto! A agremiação está a postos e o carnavalesco-em-chefe pronuncia suas últimas palavras de incentivo. Vamos ouvir um pouquinho:

Carnavalesco-em-chefe da UdAdA: (...) e se nóish pierrrdeu no ano passado, foi dje sacanag, purrrque eleish inflingiro aish riegra, tá sabiendo? Esse ano é nóish que vai gritá: “Pierrrdeu, preibói! Pierrrdeu”! E vai tê sangue, vai tê suó, vai tê lágrima! Maish esse ano eleish num ganha, não! Esse ano num vai tê pra ninguém!”

Repórter (1): Ouvimos as palavras do líder máximo da UdAdA. Com você, Carlão!

COM (1): Obrigado, Marcos. Luiz, depois vou pedir pra você comentar esse trecho do discurso. Mas, antes, vamos ver como estão as coisas do outro lado. Vaneska?

Repórter (2): Boa noite, Carlos, boa noite telespectador. Na frente oposta, tudo pronto, ou quase. Parece que tem algum problema com os adereços de uma ala, mas o porta-voz da escola me disse que vai estar tudo em ordem até a saída aqui da concentração. Um detalhe, Carlão: eles estão prometendo uma grande novidade para a bateria!

COM (1): Obrigado, Vaneska! Muito bem. Luiz, você tem alguma coisa para falar da reclamação que acabamos de ouvir sobre quebra do regulamento?

COM (2): Tenho, sim, Quer saber? Isso é frescura. O regulamento não fala nada, mas também não proíbe! Se todo o mundo ficar só no pé da letra da regra, não tem inovação, a festa não progride! Eu acho que o que eles fizeram no ano passado foi corajoso, se você quer saber. E taí! Agora as outras escolas também vão ter que inventar coisa nova pra ganhar. Isso é arte popular, não pode querer botar muita regra que azeda!

COM (1): Mas a coisa toda foi muito discutida... teve até envolvimento da ONU!

COM (2): Frescura! É Carnaval! A ONU não tem nada a ver com isso!

COM (1): Obrigado Luiz! Lembramos ao telespectador que as opiniões dos comentaristas não refletem necessariamente as da emissora. Pois bem. As escolas estão em aquecimento, as equipes técnicas estão dando aquela arrumadinha de última hora... vamos aproveitar para repassar as regras, com nossa convidada especial, a Comandante da Polícia Militar do Estado do Rio, Cel. Rosinha de Copacabana!

COM (3): Obrigada, Carlão. A gente não tem muito tempo, então vamos lá. É muito simples, aquela coisa de sempre: os jurados levam em conta originalidade, beleza, desenvoltura e letra do enredo, mas nada disso importa muito. As escolas começam cada uma em uma ponta da avenida e se encontram no meio. Ganha quem chegar do outro lado com mais integrantes vivos. Vivo sem ferimento vale um ponto; ferido que puder se locomover sozinho vale meio; e de maca vale zero-vinte-e-cinco. Depois da confusão do ano passado, a Liga resolveu adotar as Regras de Convenção de Genebra, então podem tirar o cavalinho da chuva: nesta edição não vai ter gás mostarda, já que usar armas químicas custa meio ponto e, com o desfile competitivo como anda, isso pode fazer a diferença entre a vitória e a derrota.. Mas é uma boa mudança porque vai forçar as agremiações a inovar dentro do que é permitido.

COM (1): Obrigado, Comandante Rosinha! Muito bem, amigos telespectadores! Últimos segundos antes de começar a festa! Este ano, o G.R.E.S.C. CV vem com o seu enredo acid-fusion transgênero: “Von Clausewitz, minha Mulata”. Do outro lado vem a Unidos dos Amigos dos Amigos vem com um enredo eletrizante e muito ligado às raízes da nossa cultura popular, o lírico samba-funk “Pol Pot e Beria Sambando no Micro-ondas”, uma homenagem singela a dois grandes pensadores tão admirados pela nossa gente. E lembramos que, para este ano, a AdA promete uma novidade inesquecível!

(morteiros disparam granadas de fósforo branco que iluminam a passarela, marcando o início do desfile)

COM (1): Luiz, o que você tem a nos dizer sobre as comissões de frente?

COM (2): Olha, Carlos, a da AdA não tem nada de mais, se bem que eles estão prometendo alguma coisa nova logo em seguida, para o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira. Já a do CV é originalíssima: são 14 cães neuróticos executando uma bela coreografia.

Repórter (2): Carlão?

COM (1): Pois não, Vaneska?

Repórter (2): Carlão, a bateria do CV mal entrou na avenida e já se prepara para mostrar a tal surpresa. Não vão nem esperar fazer a cabeça de praia no recuo!

COM (3): Carlão, isso vai ser interessante...

COM (1): Por que, Comandante?

COM (3): É que eles pediram para a gente uma autorização especial... eu não vou falar o que é para não atrapalhar a festa, mas se prepare que vem coisa boa por aí!

(poucos metros depois da saída da concentração do CV, um clarão e um estrondo; segundos depois, toda a ala de Baianas Kamikazes da AdA é vaporizada)

COM (2): Que beleza! Que originalidade! Isso é que é arte popular, minha gente!

COM (1): Comandante?

COM (3): Pois é, Carlos. A surpresa era essa aí que você acabou de ver. Além dos seus já tradicionais surdos de kevlar e tamborins de repetição, este ano a bateria do CV veio com uma companhia de artilharia. São doze obuseiros auto-propulsionados M 108 de 105mm!

COM (1): Então era essa a grande surpresa do CV. Muito bem! Pena que o efeito não foi tão grande quanto poderia ter sido, não pegaram nenhum carro alegórico, só infantaria leve. Mas provavelmente, no ano que vem, eles já vão ter um pouco mais de experiência com balística.

Repórter (3): Carlão?

COM (1): Diga César!

Repórter (3): Carlão, eu estou aqui no meio da passarela, onde as duas escolas devem se encontrar daqui a segundos. A comissão de frente da AdA parecia um pouco recalcitrante, mas os técnicos jogaram gás de pimenta num deles e eles estão avançando de novo. E olha só, Carlão! A comissão da escola oponente parece que sentiu o cheiro de medo deles e pulou em cima! A coreografia desandou e isso vai custar pontos, mas os bichinhos estão mostrando a que vieram! Acabou de passar por mim um mastim que foi best in show no mundial do ano passado, arrastando pelo pé um membro da outra escola. E parece que já acabou, viu, Carlão?

COM (1): É uma pena... o confronto entre as comissões de frente costuma ser equilibrado e durar um pouco mais. Mas vamos em frente que a coisa aqui não para! Os dois primeiros casais já estão a apenas vinte metros um do outro, prestes a dar início ao mais belo momento do desfile, na minha modesta opinião. A porta-bandeira da AdA vem com uma lança simples, enquanto a do CV traz uma alabarda decorada com as cores da escola!

COM (2): Faz tempo que a gente não vê coisa nova nessa área...

COM (3): Ah, mas tem outra surpresa por aí! Vocês vão ver e é já!

(Durante a evolução, o mestre-sala da AdA puxa duas Ingram MAC-11 de dentro de sua túnica e esvazia os pentes sobre o casal da outra agremiação. Assim que pára de atirar, cai vítima de dobermans furiosos, enquanto a porta-bandeira luta bravamente contra um dogo argentino meio manco que termina empalado).

COM (2): Ah, isso sim! Que beleza! Isso é que é cultura popular!

COM (1): Não sei não... isso pode, Comandante?

COM (3): Pode sim, Carlão. Foge à tradição, mas não tem nada na regra que proíba.

COM (1): Eu acho uma pena... sempre apreciei essa tradição do combate apenas com armas brancas entre os primeiros casais...

COM (2): Se dependesse de você a gente ainda tava naquele negócio chato de uma escola por vez e só com dancinha pra cá, dancinha pra lá.

Repórter (3): Carlos, agora os dois primeiros carros alegóricos se aproximam do meio da Pista.

COM (3): Pois é, vamos ver como eles se saem. Por enquanto ninguém pontuou, já que a porta-bandeiras da AdA pisou num mina anti-pessoal que o CV plantou na entrada da concentração. E olha, gente, que vai ser equilibrado.

COM (1): Costuma ser, né? Mas explique para o telespectador, Comandante Rosinha.

COM (3): Os dois vêm com blindagem nível I e lança-chamas. Provavelmente vai dar M.A.D.

COM (2): Mutually Assured Destruction? Coisa mais sem graça...

(ao se aproximarem um do outro, os dois carros abrem fogo ao mesmo tempo, transformando um ao outro em pilhas de metal retorcido e nuvens de fumaça e purpurina)

Repórter (3): Carlão?

COM (1): Diga, César!

Repórter (3): Tem uma movimentação diferente por aqui, viu? Acho que vem aí a tal grande surpresa da AdA.

(de um carro alegórico da AdA ergue-se uma torre de metal em que está pendurada uma enorme tela de projeção. Sobre a tela, surgem números: 1:00 ... 00:59 ... 00:58)

COM (3): Essa eu não sei o que é... não tinha nada nos formulários sobre contagem regressiva...

(continua a contagem regressiva. Abaixo dos números, surge a mensagem: “Segundo lugar, nunca mais! Pelo sangue derramado dos nossos sambistas! Allah Uh Akhbar!”)

COM (3): Carlão, Meu contador Geiger tá dando uma leitura estranha... tem algo de errado aqui...

Repórter (3): Carlão, eu não tô entendendo muito bem o que está acontecendo, mas os integrantes da AdA estão amarrando faixas verdes na cabeça...

COM (2): Mas essa não é a cor deles! Vão perder pontos com isso!

COM (1): Cala a boca, Luiz!

COM (3): Meu deus do céu, foi por isso que eles invadiram Aramar!

(00:01 ... 00:00)

(dizem que o cogumelo foi visto até em Parati. Na quarta-feira, o pouco que restava da Região Metropolitana estava coberto de cinzas)

19 de fev. de 2009

Metamorfose

Ela era uma dessas pessoas que parecem fazer parar o mundo quando aparecem. Sabe essas borboletas azuis e grandes que tem na mata e que saem do meio das árvores e fazem todo o mundo ficar quieto, olhando, embasbacado? Ela era assim. Feita de brilho. Leve. Estonteante. De uma beleza tão completa que permite usar a palavra sublime, por mais cafona que seja, porque quando se justifica, quando é a única palavra possível, deixa de ser cafona para ser precisa. E a palavra é esta. Ela era sublime.

Mas a borboleta começou a perdeu a cor e a vontade de voar. Pousou em um canto qualquer e fez casulo.

Quando saiu, era só mais uma lagarta como qualquer outra.

15 de fev. de 2009

Mal-Entendido

“Que loucura”, pensou, enquanto acendia um cigarro no teto do prédio, único lugar do banco onde era permitido fumar. “Quem diria, um tempinho atrás, que eu ia estar nessa?" Cobertura na Vila Nova Conceição, carros importados na garagem do prédio, filhos no Graded, motorista para levar para cima e para baixo. "Como é que faço pra pagar tudo isso agora? Vai ser difícil, mas a gente dá um jeito. Vamos ter que cortar algumas coisas, claro, as crianças vão ter dificuldade para se adaptar. Mas algum jeito, a gente dá. O apartamento tá pago, até aí, tudo bem. Mas com condomínio de dez paus? Sem chance!”

Fumava e andava de um lado para o outro, tentando imaginar como ia explicar para a mulher que o trader superstar que ele era tinha feito uma burrada enorme. Que o hedge tinha desmontado e estourado na cara dele. Que ia para a rua, com certeza, assim que contasse para os sócios.

“Mas tudo bem, vai dar certo. A gente tem uma grana guardada. E com a venda do apartamento dá pra comprar um lugar mais simples e ainda sobra um bom pedaço. A gente se aguenta por uns tempos até a poeira baixar e eu arrumar outra coisa. Todo o mundo sabe que não foi culpa minha, que o mercado tem dessas coisas. Eu sou bom e o pessoal sabe disso. Pode até ser que numa corretora pequena, num banco menor, mas alguma coisa em arranjo. Pôxa, quem sabe eu volto a dar aula enquanto isso? Encaro a coisa como sabático, não como demissão!”

Estava resignado. Sabia o que ia acontecer e estava em paz com a situação. A vida tem altos e baixos, e coisa e tal. Aliás, só resignado, não: estava tranqüilo, pela primeira vez em um bom tempo. Mais do que isso. Por incrível que pareça, estava até feliz. A idéia de passar um tempo longe da pressão da mesa de derivativos parecia cada vez mais atraente. Ia dar tudo certo.

Chegou mais perto do parapeito para ver, provavelmente pela última vez, o jogo de luzes que formavam os holofotes da fonte do saguão externo do prédio. Sorriu, deu mais uma tragada e esticou o braço para jogar a bituca lá embaixo. Na mesma hora, um carro furou o farol da Tabapuã e foi pego em cheio por um ônibus que vinha pela Faria Lima. Somados o corpo meio projetado para fora do prédio, o impulso para jogar o cigarro a uma boa distância e o susto da batida, caiu.

Ninguém, nem a mulher, nem a mãe, imaginou que não tivesse sido suicídio.

12 de fev. de 2009

Do Outro Lado

Paulo sabia que era perigoso, mas foi assim mesmo. Agora estava lá, perdido no meio do nada, sem comida e sem água. Por todos os lados, areia e mais areia. Não custava nada esperar mais um pouco e montar uma expedição. Mas acadêmico é tão ganancioso com a sua ciência quanto operador de bolsa, com spread de derivativo. Fez tudo escondido e às pressas, foi sozinho, sem saber muito bem o que estava fazendo. Não queria dividir a glória da descoberta com ninguém.

O mapa. Tinha encontrado o mapa enquanto arrumava a papelada do escritório do tio-avô, morto sem deixar filhos e famoso por acreditar em qualquer teoria obscura, por mais maluca que fosse, colecionador incansável de documentos obviamente forjados. Mas este mapa, não. Este era de verdade. Paulo era, provavelmente, a maior autoridade do país – do mundo!!! – em Alvar Nuñez. E o mapa tinha todas as características de um legítimo Cabeza de Vaca. E mostrava claramente a localização da cidade perdida.

Certo que o mapa iria levar à maior descoberta arqueológica das Américas desde Machu Pichu, pegou o primeiro vôo para Quito. Agora ali estava, no meio do deserto de Nazca, a dezenas de quilômetros do povoado mais próximo. A bateria do jipe tinha perdido a carga. Sem rádio e fora do alcance da rede de celular, o negócio era tentar chegar a pé até algum lugar.

Andava há horas. O sol queimava sua pele, mesmo com protetor solar FPS 60. Queimava seus olhos, mesmo com óculos escuros. Cozinhava os miolos. Sabia que logo morreria se não encontrasse ajuda. Ou, pelo menos, água. Já sentia os efeitos da desidratação; ia perder, já, já, o pouco que restava da capacidade de raciocinar. Sabia que estava começando a ter dificuldades para separar a realidade da fantasia: por duas vezes já tinha enchido a boca de terra, pensando que era água. Desespero. Caminhava com a cabeça baixa. Tropeçou e caiu.

Pensou em desistir. Mas, aos poucos, levantou e olhou em volta. E viu, a uns duzentos ou trezentos metros, uma formação rochosa. Se conseguisse subir nela, talvez do alto pudesse ver um rio, um lago, talvez até alguma cidade.

No deserto, é difícil ter uma boa noção de distância. A formação estava a quilômetros de distância. Quando finalmente chegou, já não andava: engatinhava. No estado em que estava, nem pensar em escalada. Começou a acompanhar o contorno da formação, já em franco delírio.

Depois de muito tempo, ou de alguns minutos, já não sabia dizer, mãos, cotovelos e joelhos em carne viva, sentiu a textura do solo mudar. À sua esquerda, um pequeno filete d’água escorria de uma rachadura na pedra, formando uma pequena poça. Convencido de que era apenas uma nova miragem, mas sem nada a perder, começou a lamber o chão. Desta vez era água de verdade. Bebeu e desmaiou.

Voltou a si depois do que provavelmente foram algumas horas. O muro, com o sol mais baixo, lançava uma boa sombra. Já se sentia melhor. Sentou e bebeu um pouco mais de água. Quase restabelecido, pensou de novo em escalar o rochedo e tentar encontrar algum sinal de civilização. Levantou e, afastando-se um pouco começou a procurar por falhas, saliências, qualquer coisa que pudesse usar para subir. Foi então que percebeu uma coisa que teria percebido muito antes se não estivesse delirando. As rachaduras eram uniformes demais. Não era uma rocha: era uma muralha!

Só podia ser a cidade perdida do mapa de Nuñez. Animado, Paulo encheu seu cantil e começou a andar ao longo da construção em busca de uma entrada. Mas andou, andou e andou, sem encontrar. Já escurecia. Decidiu parar por ali mesmo e continuar quando amanhecesse.
Acordou com o raiar do sol e voltou a procurar. Mais uma vez, andou por horas sem achar passagem nenhuma. Finalmente, viu uma poça d'água no chão e percebeu que tinha dado a volta completa. Um muro enorme, circular e sem entrada visível: devia estar enterrada na areia. O jeito era retomar o plano original e escalar. Felizmente, os encaixes entre as pedras não eram perfeitos e não faltavam pontos de apoio. Lenta e cuidadosamente, Paulo escalou a muralha. Devia ter uns trinta metros de altura, no mínimo. Escalava e pensava: do que os construtores tinham tanto medo, para criar algo tão grande? Do que estavam se protegendo?

Finalmente chegou ao topo. Passou as pernas para o outro lado e desceu. Se alguém estivesse do outro lado, talvez tivesse ouvido seus gritos.
Muros geralmente são construídos para proteger quem está do lado de dentro do que está do lado de fora. Mas há exceções.

4 de fev. de 2009

Brincadeira

“Fodeu”, disse o cavaleiro errante.
“Quebrei a espada, perdi a lança.
Dulcinéia e o traíra do Pança
fugiram no lombo do Rocinante.
E o que pensei que era só um moinho?
Putaquepariu, é um baita gigante!”

28 de jan. de 2009

Rituais de Acasalamento

Muitas vezes, quando chega o fim de tarde de domingo, vou a um bar que fica aqui na esquina, sento embaixo de uma jabuticabeira e leio. Meus amigos sabem que é lá que costumo estar e às vezes aparecem. Às vezes não. Desta vez estávamos só Jane e eu.

Não é exatamente o tipo de lugar que costumo freqüentar. À uma da manhã, em plena quarta-feira, sempre tem uma fila de gente produzida em série esperando para entrar. E eu não pego nem fila, nem gente produzida em série. E ponto final.

Mas o lugar é uma boa solução para mim nas tardes de fim-de-semana. Fica a uns 50 metros de casa, tem um chopp bem tirado, uma boa seleção de bebidas, serviço bom, comida boa (e as árvores). Não é barato, mas, como economizo o táxi, ficam elas por elas. Além disso, tem uma parte ao ar livre e dá pra fazer fotossíntese.

Enfim, lá estava eu às cinco e meia da tarde, de posse de Sense and Sensibility. Confesso, envergonhado, meio inglês que sou, que nunca li Jane Austen. E confesso, ainda mais envergonhado, que não estou gostando muito. Ainda que a estória seja boa e o comentário social, devidamente mordaz, a linguagem é datada demais. Mas estou decidido: vou terminar de ler esse negócio.

Sentei no meu lugar predileto, pedi um chopp e pastel de siri com pimenta rosa e me enfiei nas façanhas da família Dashwood. O bar começou a encher e, como o livro não prendia a minha atenção e não apareceu ninguém pra jogar conversa fora, comecei a observar as pessoas.

As mulheres, quase todas, ostentavam um ou mais tons de loiro engarrafado, com as raízes mais escuras quase sempre bem visíveis; a maioria dos homens era gorda e flácida, ou garotões bombados de esteróide. Ou, em alguns casos, encontravam-se naquela transição esquisita entre um estado e outro. Marmanjo de bermuda e boné com a aba virada para trás. Garotas mal saídas da adolescência de pretinhos básicos minúsculos e cobertas de bijoux – em pleno dia! Coisas que meu senso estético simplesmente não consegue processar.

Observar os rituais de acasalamento dos humanos é engraçado. Tinha dois caras em pé junto ao bar, urubuzando o lugar. Sempre que alguma mulher olhava mais ou menos para o lado deles, imediata e quase instintivamente encolhiam suas respeitáveis barrigas de cerveja. Também tinha três meninas obviamente siliconadas e botocadas (aos vinte-e-poucos anos!) que foram abordadas algumas vezes. Imediatamente estufavam seus peitos hiperinflados, jogavam o cabelo amarelo de lado e olhavam, não muito discretamente, para o relógio e os sapatos do pretendente em potencial.

Quero crer que a Srta. Austen teria tido toda a cena por deveras interessante.

24 de jan. de 2009

Fim de Noite

Fim de noite. Ele abre a porta. Ela entra em casa. Segundos depois, ele também entra. Ela vai direto para a geladeira, pega uma garrafa de Coca-cola de dois litros, quase no fim, e bebe o restinho direto do gargalo. Ele vai ao banheiro, faz xixi, lavas as mãos e vai para o quarto. Enquanto ele tira a roupa com cheiro de cigarro, é ela quem vai ao banheiro e faz xixi. Ele veste o pijama enquanto ela lava as mãos.

Ele liga a TV, começa a zapear pelos trocentos mil canais em busca de algo que mate a insônia, de preferência, ou, se não der, pelo menos mate o sono. Ela liga o computador, lê emails, abre o Orkut, entra invisível no MSN para ver se tem alguém com quem valha a pena conversar sobre o que quer que seja. Mas é claro que às cinco da matina só estão online os losers completos. “Eu inclusive”, pensa.

“Droga de festa. Gente mais chata”, diz ele para os botões do controle remoto. “Festa mais chata. Droga de DJ”, ela pensa. Morto de tédio, mas ainda sem conseguir dormir, ele resmunga, “Que se dane” e serve-se de um uísque. Ela desliga o computador, pega a Veja de duas semanas atrás, vai para o quarto e acende um cigarro que fuma enquanto lê o Mainardi pela décima vez. Agora é ele quem liga o computador, abre um arquivo de trabalho e tenta dar uma adiantada nas coisas da semana que vem. Claro que morto de cansado – e não exatamente sóbrio – tudo o que fizer vai ter que fazer de novo outro dia. Mas pelo menos ocupa o tempo. Ela joga a revista no chão, liga a TV do quarto e assiste a um capítulo de Allie McBeal que já viu tantas vezes que sabe os diálogos de cor. Mas ocupa o tempo, pelo menos. E preenche o silêncio.

Ele desiste de estragar trabalho, fecha o Word e abre o Orkut, lê emails. Vai ter outra festa amanhã. As mesmas pessoas, o mesmo tipo de lugar. Gosta das pessoas e gosta do lugar. Mas já está meio saturado tanto de umas quanto do outro. Melhor ficar em casa, ler alguma coisa. Mas, no fim, provavelmente vai acabar indo, sim. E morrendo de tédio. Ela, que já sabia da festa, tenta resolver se está ou não com vontade de ir. Passam os créditos finais de Miss McBeal e ela dorme embalada pelo sotaque horrendo do Dr. Phil. A essas alturas o sol já ameaça raiar e ele desiste de dormir na hora em que jornal é delicadamente arremessado pelo zelador contra a porta do apartamento.

Eles são perfeitos um para o outro. Pena que, mesmo morando na mesma cidade, no mesmo quarteirão, nunca vão se conhecer, nunca vão se apaixonar, nunca vão ter três filhos lindos e quatro maravilhosos netos. Não vão montar casa juntos, nem viajar juntos para Barcelona, nem ver juntos o pôr-do-sol em Santiago, nem envelhecer juntos, nem esquecer juntos das coisas que viram e fizeram juntos.

20 de jan. de 2009

Interpretação de Texto

“E aí, terminou de ler?”

“Faz uns dias.”

“Então conta.”

“É mais ou menos assim. É meio confuso, então você vai precisar ter paciência, tá? Mas é assim, ou, pelo menos, foi o que eu entendi. Tem um cara, o Riobaldo, que está contando uma história pra alguém que nunca responde. Esse Riobaldo era parte de uma trupe de jagunços que viviam para cima e para baixo na região da Caxemira. Só que além de serem jagunços, eles também faziam espetáculos circenses.”

“Sei...”

“Pois então. Daí esse tal de Riobaldo conhece um outro jagunço que se chama Diadorim e, tipo, meio que rola um clima entre os dois, sei lá... Eles fogem pra tentar se casar, mas tem um cara que muda de nome no meio algumas vezes, tem hora que é Bebêlo, tem hora que é Bulbul, e vai lá e busca eles de volta e eles acabam se casando ali mesmo, na vila de Pachigam. E eles ficam juntos um tempo, mas a situação vai ficando complicada por causa da guerra com o Paquistão. E um dia, numa apresentação de dança, o Diadorim conhece o embaixador dos Estados Unidos e foge com ele. E o Riobaldo se junta aos militantes islâmicos e jura que vai matar o tal do embaixador.”

“Continua...”

“Então, daí, não entendi muito bem como, o Diadorim fica grávido e obeso e tem uma filha. A mulher de verdade do embaixador pega a menina pra criar e some com ela pra Inglaterra, onde a menina um dia cai, torce o pé e conhece um tal de Willoughby, mas o cara é meio pilantra e ela acaba ficando com um outro, um sargento, ou tenente, ou coisa parecida, não lembro o nome.”

“Seria Coronel Brandon?”

“É! Isso! Nossa, como você sabe das coisas!”

“Não importa, continua.”

“Tá. Daí a menina sai da Inglaterra porque o império está em decadência e vai parar nos Estados Unidos no final do século vinte. Sei lá, tem uns pulos no tempo que eu não entendi muito bem, mas enfim, Estados Unidos, fim do século vinte. Aí o Riobaldo, que virou motorista do pai dela, o tal do embaixador, dá uma facada nele. E a menina fica meio louca e vai fazer um documentário na Caxemira. Enquanto isso, o Riobaldo acaba sendo preso.”

“Ah, é?”

“É. Daí ela volta da Índia e começa a escrever cartas pra ele na cadeia e ele fica meio louco, sei lá. Um dia tem uma fuga da prisão e ele os caras levam ele junto, mas no fim só ele escapa porque sabe voar. E voa até a casa da menina e tenta matar ela, mas no fim é ela quem acaba matando ele. E acho que é isso, é meio confuso, mas é mais ou menos isso mesmo.”

“...”

“E aí, o que você achou?”

“Quantas vezes eu preciso te falar para ler um livro só de cada vez?”

8 de jan. de 2009

Porcos

Tem uns caras por aí (e não são poucos) que me dão vergonha de pertencer ao mesmo gênero. Às vezes parece que quase todos os homens que conheço são uns putos de uns misóginos, assumidos ou não. Deve ser por isso, aliás, que tenho poucos amigos. Uns dois ou três. Todos os outros são conhecidos com quem simpatizo, na melhor das hipóteses, ou que execro, na pior. E mesmo esses com quem simpatizo às vezes soltam umas que não dá para engolir.

Me revolta, enoja, ver que um monte de carinha por aí fala, fala, fala, bota banca de moderninho, mas, na verdade, acha mesmo que lugar de mulher é em casa. Que mulher não é nada além de uma máquina de fazer sexo, fazer filho, fazer comida, fazer faxina. E nem sei se esses são os piores. Porque também tem aqueles que acham que mulher tem que trabalhar, sim, dividir as contas da casa. E, nas horas vagas, ser máquina de fazer sexo, fazer filhos, fazer comida e fazer faxina. Normalmente são os mesmos imbecis que ligam pra mamãe quando têm uma dorzinha de garganta. E soltam, depois de jantar e nem fazer menção de lavar a louça, "por que você não pede para a minha mãe te dar a receita do tempero dela?". Palhaços.

Os mesmos proto-humanos que ficam nervosinhos se a mulher tem amigos no trabalho, mas vão pro happy-hour e não param de olhar para a bunda da garçonete, o decote da menina 20 anos mais nova na mesa da frente, as costas da hostess do bar. E trocam com os amigos olhares cúmplices de pseudo-sátiro, como quem quer dar a entender: "se quisesse, comia muito essa aí". E falam dos puteiros que freqüentam (comentário impertinente: vai dar uma trabalheira parar de usar trema), como se pagar uma mulher por sexo fosse prova de macheza.

Os mesmos babacas, porcos, limitados, que parecem acreditar que o ápice da realização masculina é não ter qualquer interesse ou assunto que não seja futebol ou mulheres de quem jamais irão chegar perto. Que agem como se fosse direito inalienável de uma classe superior olhar para qualquer membro do sexo oposto como se fosse um pedaço de carne. Que reclamam que a namorada está gorda, quando eles mesmos são flácidos, moles, ensebados por dentro e por fora e no cérebro; que reclamam que ela não está depilada, quando eles mesmos fazem a barba para ir ao trabalho (provavelmente esperando que a gostosinha da recepção lance olhos em sua direção), mas, em casa, no fim-de-semana, dão folga para a espuma e a gilete; que reclamam que a casa está bagunçada quando eles mesmos são incapazes de pendurar uma toalha, ou limpar a pia depois de fazer a barba (admitindo, claro, que seja dia de ver a menina da recepção).

Então chega de enrolação e vamos lá: minhas caras, por favor, aceitem as minhas mais sinceras desculpas em nome de todos nós por essas bestas-feras com quem compartilho mictórios e o "sexo: M" dos formulários. Não desistam da gente: tem alguns que se salvam e, quem sabe, com o tempo, a categoria como um todo não melhora um pouco?

(mas tem um negócio: vocês precisam ter uma conversa séria com as suas amigas que toleram esse tipo de coisa porque enquanto elas deixarem, eles não vão tomar jeito)

7 de jan. de 2009

Anticlímax

Acabei de perceber algo que é no mínimo preocupante. Acho que estou quebrado por dentro. Pulou uma engrenagem, queimou uma válvula, fritou um chip, sei lá. Mas tem algo de muito errado. E acho que não estou nem aí.

Deve ter acontecido aos poucos, bem devagar, porque eu teria percebido antes se tivesse sido de uma vez. E acho que foi nos últimos dias, porque ainda me lembro de quando as coisas estavam funcionando direito e não faz tanto tempo assim.

Não sei nem dizer muito bem o que é, mas que tem alguma coisa errada, isso tem. Pra quem me conhece, mas não muito bem, vai parecer que só agora eu percebi uma coisa que todo o mundo já sabia faz tempo. Mas quem me conhece de verdade vai entender que não é bem assim.

Quem não me conhece tão bem pensa que eu sou frio, distante, que nada me incomoda. Mas tem umas poucas e escolhidas pessoas que sabem a verdade e a verdade é que eu acho, tonto, que preciso sempre me mostrar forte, inatingível, feito de pedra, porque é a mim que as pessoas recorrem quando têm problemas e eu não posso parecer fraco nunca. Porque se elas precisarem de ajuda e eu parecer fraco, pode ser que elas fiquem sem graça de pedir e não digam nada, e vão embora e tentem se virar sozinhas e quebrem a cara. E isso eu não posso aceitar. Então visto a máscara e pronto, que venha o mundo.

Mas eu sentia, sim, as coisas, mesmo que não demonstrasse. Eu sentia, sim, dor. Eu sentia, sim, tristeza. Mas tudo bem, porque eu sabia me virar e sempre acabava dando um jeito.

Um dia, acordei e quando abri os olhos o mundo tinha virado um pesadelo. E eu queria acordar, mas já estava acordado. E acordava de novo no dia seguinte e, antes de abrir os olhos, pensava, que bom, o pesadelo acabou, mas o pesadelo era de verdade. E no dia seguinte. E no dia seguinte. E no seguinte, no seguinte, no seguinte. E a dor no peito que eu pedi a todos os deuses do mundo que fosse um enfarte fulminante. E a dor de cabeça que eu quis mais de uma vez que fosse, por favor, um belo AVC. E a máscara no mesmo lugar de sempre, costas eretas, peito cheio, olhar plácido, cabeça erguida, pilar do mundo, rochedo na beira do mar, farol na beira do rochedo, ponto constante e estável de referência para todo o mundo que estava no mesmo pesadelo.

E o pesadelo crescendo dentro de mim, fechado lá dentro, estagnado, uma poça estagnada, um lago estagnado, um oceano estagnado, mar morto. Mas tudo bem, desde que ninguém percebesse e que eu continuasse cuidando das pessoas e aliviando, na medida do possível, a dor que elas sentiam.

E depois de meses e meses de pesadelo, a minha própria dor foi diminuindo. Até que parei de sentir e pensei que pronto, tinha acabado, agora era começar de novo, do zero, lançar fundações, erguer paredes. E continuei a tocar a vida.

E de repente acontece o impensável, o indizível, o intolerável, o inadmissível, o que seria para deixar qualquer um em estado de catatonia, para deflagrar um desses casos americanos em que o cara sai por aí matando meio shopping-center, para o vizinho ligar pra polícia e a polícia ligar pro Pinel. Para o porteiro do prédio se benzer e pensar em chamar o pastor da igreja dele porque alguém ali deve estar possuído pelo demo de tanto que urra e bate a cabeça na parede e rasga a própria cara com ralador de coco. Era para ser qualquer uma dessas coisas, ou todas, ou qualquer combinação delas. E não foi nenhuma. Era para ser a dor de todas as dores, a mãe de todas as torturas, o bisavô de todos os suplícios. E não foi nada.

Não senti nada.

E agora caiu a ficha: era para ter sentido e sentido muito. Era pra ter sido a enxurrada que chega na lagoa estagnada e estoura as comportas e arranca a barragem e derrama todo o lodo acumulado por tanto tempo e arranca árvores pela raiz e causa desabamento de encostas e deixa meio mundo debaixo metros de lama podre.

Mas não senti nada.

Parece que bebi um litro de xilocaína, parece que enrolei o corpo em cem camadas de plástico bolha, e que a dor que deveria vir de dentro não faz nem cócegas, e que a dor que deveria vir de fora mal chega como o eco de um baque distante e seco e fraco. Parece que o lodo secou e virou um lago de sal duro como aqueles que tem no deserto. Parece que a barragem está vazia e que do rio que um dia passou por ali só sobrou o leito vazio.

Não sinto mais nada. E o pior é que acho que não estou nem aí.