Acabei de perceber algo que é no mínimo preocupante. Acho que estou  quebrado por dentro. Pulou uma engrenagem, queimou uma válvula, fritou  um chip, sei lá. Mas tem algo de muito errado. E acho que não estou nem  aí.
Deve ter acontecido aos poucos, bem devagar, porque eu teria percebido  antes se tivesse sido de uma vez. E acho que foi nos últimos dias,  porque ainda me lembro de quando as coisas estavam funcionando direito e  não faz tanto tempo assim.
Não sei nem dizer muito bem o que é, mas que tem alguma coisa errada,  isso tem. Pra quem me conhece, mas não muito bem, vai parecer que só  agora eu percebi uma coisa que todo o mundo já sabia faz tempo. Mas quem  me conhece de verdade vai entender que não é bem assim.
Quem não me conhece tão bem pensa que eu sou frio, distante, que nada me  incomoda. Mas tem umas poucas e escolhidas pessoas que sabem a verdade e  a verdade é que eu acho, tonto, que preciso sempre me mostrar forte,  inatingível, feito de pedra, porque é a mim que as pessoas recorrem  quando têm problemas e eu não posso parecer fraco nunca. Porque se elas  precisarem de ajuda e eu parecer fraco, pode ser que elas fiquem sem  graça de pedir e não digam nada, e vão embora e tentem se virar sozinhas  e quebrem a cara. E isso eu não posso aceitar. Então visto a máscara e  pronto, que venha o mundo.
Mas eu sentia, sim, as coisas, mesmo que não demonstrasse. Eu sentia,  sim, dor. Eu sentia, sim, tristeza. Mas tudo bem, porque eu sabia me  virar e sempre acabava dando um jeito.
Um dia, acordei e quando abri os olhos o mundo tinha virado um pesadelo.  E eu queria acordar, mas já estava acordado. E acordava de novo no dia  seguinte e, antes de abrir os olhos, pensava, que bom, o pesadelo  acabou, mas o pesadelo era de verdade. E no dia seguinte. E no dia  seguinte. E no seguinte, no seguinte, no seguinte. E a dor no peito que  eu pedi a todos os deuses do mundo que fosse um enfarte fulminante. E a  dor de cabeça que eu quis mais de uma vez que fosse, por favor, um belo  AVC. E a máscara no mesmo lugar de sempre, costas eretas, peito cheio,  olhar plácido, cabeça erguida, pilar do mundo, rochedo na beira do mar,  farol na beira do rochedo, ponto constante e estável de referência para  todo o mundo que estava no mesmo pesadelo.
E o pesadelo crescendo dentro de mim, fechado lá dentro, estagnado, uma  poça estagnada, um lago estagnado, um oceano estagnado, mar morto. Mas  tudo bem, desde que ninguém percebesse e que eu continuasse cuidando das  pessoas e aliviando, na medida do possível, a dor que elas sentiam.
E depois de meses e meses de pesadelo, a minha própria dor foi  diminuindo. Até que parei de sentir e pensei que pronto, tinha acabado,  agora era começar de novo, do zero, lançar fundações, erguer paredes. E  continuei a tocar a vida.
E de repente acontece o impensável, o indizível, o intolerável, o  inadmissível, o que seria para deixar qualquer um em estado de  catatonia, para deflagrar um desses casos americanos em que o cara sai  por aí matando meio shopping-center, para o vizinho ligar pra polícia e a  polícia ligar pro Pinel. Para o porteiro do prédio se benzer e pensar  em chamar o pastor da igreja dele porque alguém ali deve estar possuído  pelo demo de tanto que urra e bate a cabeça na parede e rasga a própria  cara com ralador de coco. Era para ser qualquer uma dessas coisas, ou  todas, ou qualquer combinação delas. E não foi nenhuma. Era para ser a  dor de todas as dores, a mãe de todas as torturas, o bisavô de todos os  suplícios. E não foi nada.
Não senti nada.
E agora caiu a ficha: era para ter sentido e sentido muito. Era pra ter  sido a enxurrada que chega na lagoa estagnada e estoura as comportas e  arranca a barragem e derrama todo o lodo acumulado por tanto tempo e  arranca árvores pela raiz e causa desabamento de encostas e deixa meio  mundo debaixo metros de lama podre.
Mas não senti nada.
Parece que bebi um litro de xilocaína, parece que enrolei o corpo em cem  camadas de plástico bolha, e que a dor que deveria vir de dentro não  faz nem cócegas, e que a dor que deveria vir de fora mal chega como o  eco de um baque distante e seco e fraco. Parece que o lodo secou e virou  um lago de sal duro como aqueles que tem no deserto. Parece que a  barragem está vazia e que do rio que um dia passou por ali só sobrou o  leito vazio.
Não sinto mais nada. E o pior é que acho que não estou nem aí.
7 de jan. de 2009
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