27 de abr. de 2009

Bem-te-vi

"Vou chegar tarde", ela disse. "Tem um happy hour do trabalho."

E chegou mesmo. Às seis da manhã. Ele passou a noite junto da janela, olhando para fora, esperando. Telefone na mão. Ligou tantas vezes que não fazia idéia de quantas. Caixa postal. Lá pelas quatro e meia, começou a cantar um bem-te-vi que devia estar no fuso horário errado. Cantou por meia hora e ficou quieto.

Depois desse dia ela passou a chegar tarde com frequência. Quase sempre, aliás. E ele, trouxa, ficava junto da janela, olhando para fora e esperando. Já não se dava ao trabalho de telefonar. Ela não iria atender. E às quatro e meia de cada madrugada cantava o tal bem-te-vi, que aos poucos virou seu parceiro de vigília. Mania cretina de antropomorfizar as coisas. Tentava imaginar se o bicho queria dizer algo como "cara, vai dormir, desencana", ou "espera mais um pouco, ela já chega". Fosse o que fosse, o bem-te-vi era a única companhia que tinha naquelas horas de sofrimento auto-imposto.

O bem-te-vi virou seu único amigo.

Uma noite, lá pelas quatro e pouco, ele se assustou com a campainha do telefone. Era ela. Não iria voltar. A não ser para pegar suas coisas. Ele desligou o telefone e, logo em seguida, o bem-te-vi começou a cantar. Teve um acesso súbito de ódio. Como assim, cantar? Como assim? "Não percebeu, passarinho filho da puta, que agora acabou?" Se tivesse uma doze por perto, teria transformado o bicho em paçoca. Mas não tinha e o bem-te-vi continuou a cantar como se tudo aquilo não tivesse a menor importância.

(O bem-te-vi sabia das coisas.)

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