28 de abr. de 2009

Vício

Saio do escritório tarde. Prazo para o dia seguinte, maior correria. Exceção de incompetência. Coisa chata. Saio lá pelas três da manhã. A portaria da Líbero Badaró fecha às onze da noite e depois disso, só pelo Vale do Anhangabaú. Que é terra de ninguém depois que escurece. Os quinhentos metros até a alça da 23 e o ponto de táxi são sempre uma aventura quando saio tarde assim.

Cansado. Distraído. Tentando lembrar se esqueci de alguma coisa na petição. Acendo um cigarro. Gitanes sem filtro. Coisa reservada para dias de estresse especial.

“Dá um cigarro, tio?”

Paro. Olho. Enfio a mão no bolso do paletó e peço o maço; tiro um e dou para o cara. Penso com meus botões que ele não faz a menor idéia de quanto custa o cigarro que ele vai fumar. Vai acender e tragar como se fosse um roliúdi qualquer. Não que tenha qualquer importância.

“Tem fogo?”

Guardo o maço de cigarros num bolso e, com a outra mão, pego o isqueiro.

“Dá a carteira!”

Cansado. Distraído.

“O quê?”

“Dá a carteira, porra! Relógio, celular! Vai, filhadaputa!”

Com o canto do olho percebo algo brilhante na mão do figura. Faca. Olho meio fascinado para ela, que parece ocupar todo o meu campo de visão. Fodeu.

Ouço um grunhido molhado e desvio os olhos da lâmina por um instante. Meu interlocutor me encara, surpreso e exoftálmico. Surpreso eu, também, ao ver minha mão livre agarrada à sua garganta. Ouço o som da faca caindo no mosaico português, um som distante. Minha atenção se concentra, toda, na visão — daquela boca contorcida — e no tato: na pele quente, escorregadia, sebosa; na carne que cede, relutante, à pressão dos dedos; na sensação, afinal, das pontas do polegar e do indicador quase se tocando atrás da traquéia, separadas apenas por uma dupla camada de derme.

Minha mão tem vontade própria e continua a se fechar, comprimindo as vias aéreas do coitado e forçando a língua para fora. Em câmera lenta, vejo minha mão trazer o rosto em pânico para perto do meu. Aos poucos meus sentidos abrem espaço para o olfato e percebo seu hálito podre. Meus olhos dentro dos seus, que, estranhamente, parecem pedir ajuda. Ajuda? A essas alturas? Não tem mais jeito, meu caro: o hióide e a cricóide já foram pro saco. Eu senti quando eles partiram. Não tem mais jeito.

Praticamente me derramo naqueles olhos de sampaku. Entre o horror e o fascínio, vejo as pupilas se dilatarem até comerem quase toda a íris. Minha mão está praticamente fechada. Nossos narizes quase se tocam. Quando minha mão finalmente começa a se soltar, um último suspiro escapa daquela boca morta: agudo, discreto, rouco, como uma mulher que goza baixinho. Minha perdição.

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Faz anos que às vezes me pego fazendo hora no escritório, inventando motivo para ficar até tarde e ter que sair de madrugada pelo Vale. Às vezes tentam me assaltar.

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